Por Mariana Kaoos

“Escrever é se vingar da perda” – Wally Salomão.

Salvador está em festa. À espera do carnaval, todos os espaços oferecem atrativos diários de alegria e diversão. No Rio Vermelho, os bares e casas noturnas comandam as opções. Na Barra, é a vez da praia e dos caranguejos. No Corredor da Vitória, Campo Grande e avenida Contorno, o conglomerado de teatros e museus não deixa por menos, de segunda a segunda tem algo para fazer. No Centro Histórico não é diferente. O Pelourinho comporta em si inúmeros espaços que apresentam uma programação diferenciada em ritmos, sons e cores.

Grande parte dos locais que compõe o Pelô não são pagos. As praças Tereza Batista, Pedro Archanjo e Quincas Berro D’agua, a depender do dia, escancaram suas portas para as pessoas transitarem gratuitamente. Toda terça-feira o cantor Gerônimo com sua banda, Mont Serrat, se apresenta nas escadarias do Passo sem cobrar nada do público. A casa sede dos Filhos de Gandy convida as pessoas a visitarem o espaço sem custo algum. Por fim, também é possível seguir grupos percussivos pelas ruas de lá e até mesmo assistir uma missa em alguma das diversas igrejas concentradas no Pelourinho.

À primeira vista, todas essas opções despertam desejo e uma (falsa) percepção de que o Centro Histórico é o local mais democrático e plural quando o assunto é “programações gratuitas”. No entanto, há um preço para se estar lá. Optar hoje por uma noite no Pelô pode custar mais do que aparenta:

-Duas linhas de ônibus podem te conduzir até o Pelourinho. Uma delas tem o nome Praça da Sé nos letreiros e estabelece um valor R$2,80 por passagem. A outra, chamada de Frescão, por ser um micro ônibus com ar condicionado, apresenta a sua chamada como Pelourinho e custa R$3 por pessoa. Nenhuma das duas opções conduzem, de fato, até a Praça da Sé. O fim de linha se encontra um pouco antes do Elevador Lacerda, o que compreende duas quadras para se chegar à Praça da Sé.

-Para os fumantes que optam por comprar uma carteira de cigarro no Centro Histórico, ela sobe dois reais a mais que o preço habitual. Um maço de cigarros da marca Carlton, que tem seu preço tabelado a R$7 chega a custar R$9 nos vendedores ambulantes e R$8 nos restaurantes. Quem fuma menos e prefere pegar o cigarro individual, ele fica a R$1 a unidade.

-Em relação às bebidas, elas diferem no valor a depender do local em que são compradas e do dia em que o Pelourinho agrega mais pessoas. Nos vendedores ambulantes, três “piriguetes” da marca Schin custam R$5. Já as da Skol ficam por R$6. O latão custa sempre R$5, independente da marca. Nos bares, a cerveja garrafa varia de R$6 a R$12 de acordo com a marca escolhida. Uma caipirinha chega a custar R$10.

-A comida não fica por menos. Um pequeno acarajé com vatapá, salada e caruru fica a R$5 sem camarão e R$6 com camarão. Os famosos churrasquinhos de gato possuem uma absurda variante. Eles variam entre R$3 e R$5. Independente do valor, a quantidade de carne que vem é sempre a mesma e a procedência é desconhecida.

-Ultrapassando o horário da meia noite, a única opção de sair do Pelourinho é de táxi. Não importa o dia, nem o horário em que se está saindo de lá, a tarifa sempre fica na bandeira dois. Só em entrar no veículo, já se paga R$3,75. Pegando o táxi perto da Baixa do Sapateiro e fazendo o trajeto Pelourinho – Ondina, o preço médio fica a R$18.

cerveja
No Pelô, a cerveja em garrafa varia de R$6 a R$12.

Esses são os valores básicos e, de certa maneira, já sabido ou imaginado por todos que pretendem ir ao Pelô. No entanto, há ainda outro preço que assusta, indigna e faz com que grande número de pessoas não retornem mais lá:

-Começando na Praça da Sé e percorrendo todas as ruas, esquinas e vielas do Centro Histórico, o numero de pedintes é alarmante. Comida, dinheiro, cigarro, cerveja. É exorbitante a quantidade de pessoas que te abordam com um discurso impositivo. Quando o pedido é negado, geralmente ouve-se palavrões ou até mesmo empurrões e alguma tentativa de furtar algo da pessoa. Dificilmente é possível ir ao Pelourinho e não dar alguma dessas coisas a alguém.

-No Terreiro de Jesus, um dos grandes espaços do Centro Histórico, sempre tem roda de capoeira. Os grupos se reúnem e começam o ritual da dança/luta que enobrece e dá beleza aos olhos de quem vê. No entanto, o que parece ser uma iniciativa livre dessas pessoas praticarem a capoeira ali, não é. Paga-se para ver também. Em determinado momento, um dos praticantes da luta passa com um pandeiro entre as pessoas e exige o que chamam de “contribuição” para eles. O valor mínimo é sempre R$2. Quando há uma recusa de pagar pra ver o jogo de capoeira, o tratamento também se torna agressivo.

-Se você tem uma aparência de turista ou “gringo”, como são chamadas as pessoas que vem de outros países, muito provavelmente os taxistas buscarão o caminho mais longo para poder lucrar o máximo possível em cima do outro. O mesmo trajeto Pelourinho/Ondina, que tem o valor médio de R$18 chega a custar R$32.

Liberdade ao povo do Pelô

O Pelourinho é um espaço que comporta muitos negros. Grande parte deles cumpre uma função de trabalho, não de diversão. Os pedintes maltrapilhos por todo o local são negros em sua maioria. Os grupos de capoeira comportam 90% de negros, os mesmos que passam pedindo contribuição. Os taxistas da Baixa do Sapateiro atendem a essa mesma quantidade.

Convivendo alguns dias seguidos no Pelourinho, nota-se que além de todos terem a negritude como algo em comum, eles também têm a baixa condição financeira. Mas, não só. Todos tem em comum a falta de educação, a necessidade de sobrevivência, talvez carreguem em si o preconceito que sofrem diariamente pela cor que levam na pele. É possível que, por serem negros, sejam perseguidos e sofram truculência policial sempre que possível. Associados a cor da pele, eles foram escravizados e depois “libertos”, mas sem o mínimo de condição de subsistência. Todos eles, à sua maneira, encontram formas de lucrar em cima de um outro que acredita ter méritos para ocupar a posição que ocupa e se indigna quando se sente “roubado”.

Obrigada a lidar com todas essas situações, o primeiro sentimento é de raiva, fúria. Se prontificar a assumir um discurso contra os pedintes, contra os capoeiristas e contra os motoristas de táxi. Entretanto, diante das essas mazelas sociais que assolam não só o Pelourinho e Salvador, mas todo o país, será que a culpa é mesmo deles?

Existe a palavra culpa no meio disso tudo? Pode-se apontar a resposta através de uma reflexão histórica acerca do Brasil? A culpa é de grande parte da sociedade que acredita que todos têm as mesmas oportunidades? Ou será do capitalismo que exige miséria e dor para que haja lucro? A culpa é de quem ainda frequenta o Pelourinho e se permite passar por essas situações? A culpa é deles que, muito provavelmente, não têm nenhuma outra expectativa de vida além dessa? Será o racismo e outras opressões como o machismo e a homofobia a grandes vilãs e causadoras dessas situações? A culpa é de quem reclama? A culpa é de quem ouve? Seria a culpa de quem tenta mudar esse contexto baiano ou de quem nada faz? A culpa é da população alienada que nem percebe a realidade bruta e cruel?

Em meio a tantas indagações, desconfortos e embates pueris, culpar alguém se torna uma tarefa muito fácil, perto da imensidão de coisas que precisam sair do discurso e serem postas em prática. Mudar a realidade da Bahia que é imposta dessa forma há séculos é uma tarefa árdua, mas que se faz cada vez mais precisa para uma convivência, consciência e cultura igualitária, onde as pessoas em geral possam realmente ter as mesmas oportunidades e que valores como a honestidade prevaleça. Força e pudor!

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