Por Mariana Kaoos*
Noite branda de verão. 20 horas. Pessoas em fila. Teatro Vila Velha. Estreia do espetáculo “Cabaré da Rrrrraça”, encenado pelo Bando Teatro Olodum e direção de Marcio Meirelles. Primeiro apito. Abre-se a porta. Todos os presentes vão entrando aos poucos, se acomodando, procurando o melhor lugar para assistir a peça de logo mais.
O público é composto em sua maioria por negros e negras, exibindo os mais diversos penteados, guias espirituais no pescoço e sorrisos mil. Mas não só, mestiços, pessoas de pele branca também mostrando que naquele espaço todos eram uma grande e bonita mistura. Ansiedade. As conversas entre grupos tomam todo o teatro, fazendo ecoar uma mistura de vozes. Tem-se a impressão de se estar numa praça pública.
Segundo apito. O público vai ficando mais calmo. O silêncio toma todo o espaço minunciosamente. As luzes diminuem, preparando o ambiente, tornando-o aconchegante. Terceiro apito. Olhos vidrados, brilhantes, febris. De uma escada no canto esquerdo, desce um homem, negro, alto, com um microfone na mão. A sua fala mescla indignação e dúvida. Com sua voz forte e marcante, ele pergunta aos presentes: “você é negro? E o que é ser negro?”. A partir daí, o espetáculo se inicia.
A peça teatral “Cabaré da Rrrrraça”, que vai completar 17 anos em cartaz, reestreou ontem, 7, a sua nova temporada em Salvador, no Teatro Vila Velha. Tendo como tema central a questão do negro e suas implicações, ela faz um apanhado sobre a questão identitária e de reconhecimento, o racismo, a industrialização e venda da cultura negra e até mesmo a escravidão sutil e sociológica que ocorre no Brasil. A palavra raça vem escrita dessa forma por uma questão de afirmação e força, bem como com o intuito de expressar raiva. A raça se apresenta como um gruído, um rosnado, mostrando a dualidade de tudo que envolve o negro.
Mesmo com tanto tempo em cartaz, o espetáculo ainda se faz atual no conteúdo. Salvador é a maior capital negra do país e, apesar de haver uma cultura de resistência dessa população, exibindo suas raízes em todos os cantos, a opressão velada ainda impera através da mídia, da represália policial, do preconceito de cor, classe social, da economia e da política. No atual Brasil do século XXI, tratar de um tema como esse pressupõe um estudo narrativo acerca dos mais de 500 anos de história brasileira.
“Cabaré da Rrrrraça” bebe da fonte do passado e debate muito bem a questão da abolição da escravidão, das oportunidades que os negros não tiveram naquela época e das poucas que existem nos dias de hoje. Dessa maneira, a peça se torna um espaço artístico onde há dialética sobre o tema das opressões, ou pelo menos, o retrato que se supõe dele.
No entanto, é preciso delicadeza e cuidado extremo ao abordar questões tão profundas e complexas como o racismo. Compreender o negro e todos os seus percalços é fazer um apanhado sobre a sua condição para além do estereótipo midiático. O espetáculo talvez peque por não adentrar no assunto da mulher negra e do machismo que impera ainda com mais vigor sobre elas. Na questão da homossexualidade, o personagem gay negro é baseado no senso comum.
De nome Edmilson/Edileuza, ele se apresenta como extremamente afeminado e oferece ao público momentos de risos e diversão, ao invés de consciência e respeito. A abordagem e percepção dos outros personagens para com ele é sempre de preconceito, asco, discriminação. É possível observar falas como “sai de mim, seu viado” ou “é preto e ainda viado” ao decorrer da peça. Para uma parte da plateia isso soa contraditório. Se o “Cabaré da Rrrrraça” se propõe a dar uma clarividência a respeito da questão do racismo, como ele não se atenta e, de certa maneira, afirma outros tipos opressão, exibindo-as a partir do senso social patriarcal e machista?
“Negro é lindo”
Enquanto todos os atores envolvidos são negros, o diretor do espetáculo, Marcio Meirelles, é mestiço, mais chegado branco. A co-diretora, Chica Carelli, também. Contudo, tanto Marcio quanto Chica, apesar de nunca terem sofrido esse tipo de opressão racista, demonstraram ter grande sensibilidade, bem como coragem, para dirigir o espetáculo.
A peça exibe de maneira clara a forma como a cultura dominante dos brancos sempre se apropriou das raízes negras e as transformaram em produto cultural vendável. Noutros instantes, também discutiu-se a forma com que traços característicos de negritude foram acobertados e apontados como vergonhosos.
O ponto alto do Cabaré é a crítica ferrenha à indústria dos cosméticos que exige socialmente que as mulheres tenham cabelos lisos, apelando para os alisamentos e criando com isso uma falsa aceitação social. Outro tema, o da religiosidade e a imposição dela foi bem mastigado. Em certo momento da peça, uma personagem grita aos quatro ventos “minha mãe não é Nossa Senhora, é Iansã”, buscando então um reconhecimento do que é genuinamente seu e negando a soberania de outras religiões acima da sua.
“Constitui um monumento de beleza”
Na noite de estreia, “Cabaré da Rrrrraça” contou com a participação especial do Ilê Ayê, grupo soteropolitano formado unicamente por negros, que busca um regaste às suas raízes. Marcio Meirelles, ao final da peça, fez um agradecimento especial ao grupo. “Em novembro de 2013 o Ilê completou 40 anos de história. Esse espetáculo é inteiramente dedicado a vocês, que são o maior símbolo de luta, resistência, fé e beleza. Eu tenho muito orgulho em poder ter acompanhado a trajetória do Ilê ao longo de todos esses anos. Muito obrigado”.
O “Cabaré da Rrrrraça” se apresentará nos dias 8 e 9, 15 e 16, 22 e 23 (sábado: 20 horas, domingo: 19 horas), no Teatro Villa Velha.
Confira abaixo a entrevista com o diretor Marcio Meirelles:
Conversa de Balcão – Esse espetáculo está há quase 17 anos em cartaz, como vocês se renovam ao longo de todos esses anos e o que tem de novo nessa temporada?
Marcio Meirelles – Nós estamos todo esse tempo em cartaz porque infelizmente a realidade não mudou muito. Na peça, nós fizemos poucas alterações. O texto que mais mudamos é o da mídia, a relação dela com o negro. Uma vez que foi descoberto milagrosamente que o negro é consumidor, a mídia começou a investir também no negro. A televisão, a teledramaturgia. Então, essa parte foi a que mais mudou. Então esse espetáculo continua atual. A gente espera que ele fique obsoleto algum dia, de não se ter mais sentido um espetáculo negro. Porém, ainda é necessário abordar esse tema.
CB – Salvador é a maior capital negra do país. Você acredita haver um orgulho ou o preconceito ainda impera?
MM – É algo muito complexo, uma coisa muito contraditória também. Ao mesmo tempo que o negro é a nossa identidade, o que vende, o cartão postal, essa cultura não é tão valorizada quanto o produto que eles realmente são. Então é isso que o espetáculo aborda, o negro como um produto que vende e é o consumidor que consome. A relação Bahia/Brasil com o negro passa por toda essa contradição. Milton Santos falava que quando o Brasil resolver o que quer com os negros, será um país incrível. Acho que falta isso mesmo, saber o que queremos e esperamos de nossos negros.
CB – Você está a frente de um projeto chamado “pós pago”. O que é esse projeto e como ele funciona?
MM – Nós, artistas, estamos vivendo essa perversão com esses projetos de editais e patrocínios que exigem que o teatro seja de graça. Ninguém exige que o cinema seja de graça, que a tv por assinatura seja de graça, que o futebol seja de graça. O teatro tem que ser de graça por quê? Isso tem feito com que um público pagante vicie a vir de graça e não queira pagar. Então estamos fazendo uma campanha sistemática para conscientizar o público de que é importante pagar, não é bom vir de graça porque dessa forma eles acabarão vendo só o que os outros querem que eles vejam. Se o público não compra pão, um dia se para de fabricar o pão. O povo deve cobrar do Estado, já que este subsidia transporte, agricultura, indústria, no entanto nós pagamos, existe dinheiro de nossos impostos ali. Então por que o teatro tem que ser de graça? É fundamental esse tipo de campanha.
*De Salvador, em especial para o Conversa de Balcão.
Confira mais fotos do espetáculo abaixo. Crédito: Jéssica Lemos.