Por Gil Brito (Blog Galhofas a Mil)

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– Dá uma com limão aí! Quarto cheio!

A forma como ele se expressou ao pedir a bebida, enfatizando que queria duas doses num só copo, não deixou dúvidas quanto ao o estado etílico em que se encontrava. Mas tal demonstração de eloquência nem seria necessária. Estava claro que, quando saísse dali e ganhasse a rua, esta seria estreita para que ele a percorresse. Para quem não sabe, os embriagados juramentados têm o estranho hábito de percorrer as vias públicas em zigue-zague, chocando-se suavemente contra os meios-fios.

No entanto, mantinha-se discreto e digno. Seu rosto também era um enigma. Era impossível decifrar que idade tinha. Orientar-se pelos traços faciais tortuosos era um grave risco de cair no erro, pois a quantidade de anos que ele trazia nas costas era certamente bem menor que a que ostentava na face, enrugada e com mais vincos e sulcos do que a camisa amarrotada que vestia. Um boné puído e um cavanhaque revolto, já grisalho, faziam o que podiam para adornar-lhe a fronte, sem muito sucesso.

Os olhos, de uma indefinição entre o verde e o castanho, eram o único detalhe ainda com alguma tímida vivacidade naquele conjunto: brilharam no momento em que o atendente do bar pôs sobre o balcão o copo cheio de pinga com limão. A cor clara e esverdeada da bebida se confundia com a das pupilas, repentinamente vivazes – como nesses desenhos animados em que os olhos dos personagens se deslocam das órbitas a ponto de tocar aquilo que lhes desperta a atenção.

Trazia consigo um companheiro, mais jovem e aparentemente ainda mais discreto. Seu primeiro ato, após sair do transe em que entrara ao ver o copo cheio, foi pedir ao atendente que trouxesse outro, vazio. Depositou no novo recipiente metade de sua pinga e entregou-o ao colega. Brindaram. A julgar pelas expressões que tomaram as faces de ambos, aquele seria, por alguns minutos, um momento de fugaz confraternização.

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Mas não foi. Eis que entra no recinto o terceiro elemento de nosso caso. Folgazão, cheio de si, corpulento e bem vestido. Calças jeans brilhantes e camiseta rente ao corpo, apesar da pança saliente. Claramente não conhecia a dupla descrita acima. Mas tinha, em comum com ela, as dezenas de doses a mais do que o que o Departamento de Trânsito consideraria “normal”. Pela forma como se apresentava, no entanto, qualquer um diria que estava apenas “alegre”. Vinha espaçoso, aberto, sorridente, cheio de si e ciente de que seu lugar, afinal, sempre esteve assegurado.

Tamanha sensação de segurança não foi suficiente para impedir que, ao passar em frente aos dois personagens, sem sequer olhar-lhes na cara, seu cotovelo se chocasse contra o copo de nosso protagonista, derramando toda a pinga sobre o balcão. Nosso terceiro elemento voltou-se brevemente, apenas para certificar-se do que acabara de fazer. Mas não se incomodou. Sorriu – ainda sem mirar o ofendido –, balbuciou alguma lamentação inócua e seguiu seu rumo, sem se esquecer de levar a outra mão ao cotovelo inconsequente, para enxugá-lo. Já adiante, abraçou outros colegas, igualmente “alegres”, espaçosos, sorridentes e autoconfiantes.

Um vizinho de balcão de nosso protagonista testemunhou a cena e permaneceu em silêncio. Estava já visivelmente alterado – a ponto de confundir a lente de uma câmera fotográfica com um cinzeiro –, mas só não perceberia o absurdo da cena se fosse cego, louco, dissimulado ou omisso. Não se encaixava em nenhuma destas qualificações, estava apenas bêbado. Mas optou por aderia à quarta e última alternativa e, aparentemente, dormiu em paz.

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O olhar de nosso protagonista, antes vivaz e reluzente, tornou-se opaco. Mirou o invasor e o perseguiu até o momento em que ele confraternizava com seus iguais. Mas não havia agressividade em seus olhos castanho-esverdeados. Antes, havia neles uma revolta impotente, quase uma resignação. Seu companheiro, com gestos meio lentos – mas decididos e objetivos – agiu de pronto: levantou o copo vazio, recém-derrubado, e depositou nele todo o conteúdo que ainda restava no seu.

O gesto não foi suficiente para que as pupilas de nosso protagonista voltassem a reluzir o mesmo verde que colorizava o copo, antes de ser tocado por aquele cotovelo invasor e “alegre”. Mas tornou-os novamente vivazes e restabeleceu, ainda que de forma tênue, parte da alegria que havia neles, no momento em que os dois companheiros levantavam seus copos para o brinde. O sujeito não teve dúvidas: recolheu mais algumas moedas no bolso e pediu mais duas doses, uma para cada um. Brindaram, novamente, a fim de reparar o fracasso do brinde anterior. Copos vazios, os dois foram embora. A noite, ainda “criança”, aguardava-os, ainda que para dormir e lamentar.

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Enquanto isso, o sujeito “alegre”, dono do cotovelo invasor e derrubador de copos alheios, incapaz de sujeitar-se a um humilhante pedido de desculpas a um mendigo miserável, mantinha o sorriso, o brinde, os lugares-comuns, as piadas sem graça e a estrutura a que todos nós nos habituamos.

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Mas, afinal, quem é que se importa com isso?

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