Por Mariana Kaoos

O Quintal é um bar localizado no Campo Grande, em Salvador. Pequeno e aconchegante, ele oferece, além da cerveja gelada e dos pratos da casa, uma variedade de cachaças que agradam os mais diversos clientes. A música de qualidade é ouvida não só através das caixas de som espalhadas pelo local, mas também de uma enorme mangueira que traz sonoridade quando o vento bate em suas folhas. O bar fica perto de três grandes teatros da cidade: Teatro Castro Alves, Teatro Gamboa Nova e Teatro Vila Velha. Essa especificidade faz com que seja possível observar grande parcela da classe teatral e artística bebendo cerveja nas mesas d’O Quintal.

Ontem (11) não foi diferente. Tomando caipirinha, comendo carne do sol e pedindo sempre mais cerveja, alguns atores pertencentes à Universidade Livre de Teatro Vila Velha estavam lá brindando o sucesso de estreia da mais nova peça em exibição: “Frankenstein”. O espetáculo, que fica em cartaz em datas especificas ao longo do mês (14, 18 a 21), é dirigido por Marcio Meirelles e baseado no romance homônimo de Mary Shelley. Em meio a risos, exaltação e curiosidades cênicas, os atores envolvidos proclamaram alegria e satisfação: “um brinde ao dia de hoje, porque amanhã a Deus pertence e só nos interessa o agora. O AGORA”. Foi possível ouvir essa, dentre inúmeras outras falas na noite de ontem.

A Universidade LIVRE de Teatro Vila Velha

A Universidade LIVRE foi criada em fevereiro de 2013 com o intuito de ser um espaço experimental, de formação artística e constante dialogo com a sociedade. Eles têm como princípio usar o teatro como ferramenta política de transformação, conectando-se com as ideias de nomes como o artista visual Joseph Beuys (1921-1986) e do diretor teatral Zé Celso Martinez.

De acordo com o diretor teatral Marcio Meirelles, “a LIVRE é uma comunidade multidisciplinar, que surge com a necessidade de repensar a sociedade, o teatro. Propõe-se não só à reflexão, mas à ação, dando resposta a um teatro que encontra dificuldades para conservar seu público. É um espaço de troca sempre constante de conhecimento. Não temos professores, alunos, departamentos… Trabalhamos com dramaturgia, cenografia, iluminação, figurino, percussão, voz, corpo, tecnologia. Não há obrigação. O que nos interessa é o compromisso”, explica.

Criador e criatura

Por volta das 19:30 da noite de ontem, já era possível ouvir desde a porta do Vila Velha os batuques e vozes em uníssono que vinham de dentro. De um lado, idosos praticando ioga ao ar livre. Do outro, na sacada do teatro, pessoas aos montes, todas de branco, faziam movimentos como se estivessem limpando algo. A frase “eu quero viajar, eu quero ver o mar” era proferida a todo instante.

O público, curioso e incompreensivo, assistia em pé ao que acontecia. Exatamente às 20 horas, um ator pegou o microfone e agradeceu a presença de todos. Além da explicação de como o Vila sobrevive financeiramente, ele também exaltou os 50 anos de existência do espaço. Afirmou que o teatro é pelo e para o público e, finalmente, deu início ao espetáculo.

Diferente de outras montagens, ” Frankenstein” é uma peça de inúmeras facetas. Logo no início, a platéia se divide, podendo escolher por qual ângulo de visão assistir a primeira parte da história. Marcio Meirelles se apropriou de maneira ousada de cada parte do teatro e repartiu fragmentos de interpretações entre os banheiros, camarins, foyer, sala de comunicação, escadas, sala de ensaio e finalmente o espaço principal do teatro, onde ocorrem as peças em geral. Certamente, nesse primeiro momento, pode-se afirmar que são inúmeras histórias dentro de um mesmo tema e que, para compreender o espetáculo por inteiro, seria necessário assisti-lo mais de uma vez e acompanhar todos os passos de todos os personagens.

A história perpassa por Victor Frankenstein, cientista que descobre a origem da vida e, com partes de corpos de mortos, cria o monstro que fica conhecido pelo nome igual ao seu: Frankenstein. A partir daí, outros acontecimentos se sucedem, resultando na sua decadência, desespero, perseguição, fuga e morte. Os atores transitam por todos os personagens, deixando a peça mais dinâmica e respaldando a atuação de si próprios em todos os papéis.

A peça conta também com outros recursos como a projeção audiovisual. Em determinado momento, onde o criador e a criatura travam um diálogo existencial, é exibido no chão da sala projeções de miséria, multidões, dor, sofrimento. Isso aumenta a intensidade dos dizeres e causa uma aproximação com o público, tornando o que é dito real e palpável.

Fotos: divulgação.
Fotos: divulgação.

“A multidão é um monstro sem rosto e coração”

“Frankenstein” se destaca e dá um passo a frente de outras montagens ao trazer todo um significado social e humano por trás da história que escolhe como tema. Na verdade, durante todo o espetáculo, nota-se que ele é uma grande metáfora para se referir a problemas da humanidade como opressões, submissão, miséria, ambição exacerbada, dentre outras aberrações criadas e repassadas pelo homem, que assolam o mundo.

O povo é apontado como esse grande monstro incontrolável, como a ferida, como a grande raça de demônios. A personagem Justine, criada que é condenada à forca por um crime que não cometeu, profere em seu discurso, antes de morrer, uma raiva racional, uma dicotomia entre o rico e o pobre, o luxo e a miséria, o branco e o preto, o patrão e o servente, e afirma que toda essa discrepância serve para a exaltação e soberania de uns, em detrimento de outros.

Ao final do espetáculo, com todos os atores reunidos, a atriz que faz o personagem da romancista Mary Shelley provoca a plateia a revisitar a si própria e apontar quais monstros carregam dentro de si. Ela traz todo um apanhado sobre uma utopia de revolução social onde as diferenças cessariam e ocorreria a ascensão do povo, em busca de uma vida em sociedade com menos monstros. No entanto, sua fala é de conformismo ao perceber que isso não aconteceu. Pelo contrário, os Frankensteins nascem com mais vigor a cada dia dentre os seres humanos e o desejo de transformação e mudança diminuem com o passar do tempo.

“Vou encontrar no infinito um novo mar”

O espetáculo estreado ontem foge do circuito comercial de peças. No seu primeiro dia de exibição ele abrigou um público relativamente pequeno, mas atento a tudo que ocorreu, surpreso com a dinâmica cênica e reflexivo com a sua mensagem final. Marcio Meirelles, bem como toda a equipe envolvida na montagem, oferece ao público um espetáculo de extrema qualidade visual, tecnológica, moral e cênica. A leva de atores, novíssimos em sua maioria, também exibe confiança e respaldo no que fazem.

“Frankenstein” analisa e traz de volta a discussão existencial da condição humana e os alicerces em que ela se apoia atualmente. O que é visto na peça pode ser observado como um reflexo do que é visto no cotidiano, assim como o que é visto no cotidiano é transformado em arte metafórica na peça.

O teatro permanece dessa maneira, não como mero entretenimento, mas como fonte conscientizadora de uma realidade social e, principalmente, como arte, que mantém um processo simbiótico com o público se retroalimentando e buscando com isso, novas formas de percepção e novas formas de conduzir a vida humana.

SERVIÇO
“Frankenstein”. Direção: Marcio Meirelles.
No Teatro Vila Velha (Av. Sete de Setembro, Campo Grande).
Dias 14 e de 18 a 21 de fevereiro de 2014, às 20 horas.
Entrada: R$ 30 e R$ 15 (meia).

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