Lá em 1938, os compositores de música popular brasileira discutiam um tema que consideravam “empolgante”: direitos autorais. Eles acusavam a entidade arrecadadora de “distribuir migalhas”, procurando ainda, como o deus Saturno, “destruir seus próprio filiados, chamando-os de plagiários e apontando-os à execração pública.”

Como se vê, a briga recua longe no tempo. A história está no livro ‘O que é que a baiana tem — Caymmi na Era do Rádio, da jornalista e pesquisadora Stella Caymmi, neta e biógrafa de Dorival. Na obra — que será lançada no ano que vem, quando se completam 90 anos do rádio no Brasil —, ela mostra a origem da arrecadação dos direitos no país e desfaz a imagem glamourosa da Era do Rádio. De romântica, a época não tinha nada.

“O livro é como se fosse o lado B do rádio. Era uma selva. Meu avô revela as entranhas. Fala das competições, das dificuldades. Trato de temas como rádio, mercado fonográfico, cinema, direito autoral, espetáculos musicais, nos quais são reveladas as pressões e tensões sofridas pelo artista popular”.

Originalmente, era a SBAT (Sociedade Brasileira de Autores Teatrais) que cuidava dos direitos autorais dos músicos. Afinal, era a época de ouro do teatro de revista, que apresentava numerosas canções populares.

“A música era o primo pobre da arrecadação. O que era arrecadado do teatro era chamado de “grande direito”. E, da música, ′pequeno direito`”.

Dorival Caymmi, Carmen Miranda e Assis Valente
Dorival Caymmi, Carmen Miranda e Assis Valente

Até que um grupo de músicos resolveu fundar a Associação Brasileira de Compositores e Autores (ABCA), em 1938. A iniciativa foi autorizada pelo Departamento de Imprensa de Propaganda (DIP) de Getúlio Vargas. Na “Edição comemorativa do terceiro aniversário” da ABCA, na primeira página, aparece a foto de Vargas e a legenda: “O maior estadista americano, sr. GETÚLIO VARGAS, patrono das leis brasileiras de proteção ao direito de autor e único sócio honorário proclamado pela ABCA.”

Caymmi é logo cooptado para a causa da nova entidade. “Mas foi uma guerra”, diz Stella Caymmi.

É que alguns músicos, como Ary Barroso, que tinham muitas músicas no teatro de revista, se recusaram a sair. Até que todos se juntaram e surgiu a UBC, União Brasileira dos Compositores, em 1942. O livro é a tese de doutorado de Stella, defendida na PUC, com orientação de Júlio Diniz. Stella ainda é autora ainda de “Dorival Caymmi, o mar e o tempo” e “Caymmi e a Bossa Nova”.

“Foi a música de estreia dele, em 1939. Por ela, dá para ver os grupos de interesse que havia, políticos e mercadológicos. E meu avô abre o verbo, à maneira dele, sem amargura, docemente. Ele lutou desde o início pelos direitos autorais, foram mais ou menos 40 anos de luta. No fim da vida (morreu em agosto de 2008), estava cético, vendo que não havia qualquer possibilidade de ele fazer diferença e percebendo que o compositor continuava sendo lesado”.

Ao mesmo tempo em que deu muitas alegrias a Caymmi, O que é que a baiana tem?, música que aparece no filme Banana na terra, trouxe dissabores.

“Há um histórico de ocultação”, diz Stella.

O texto garante que na época, e ainda hoje, parece que se quer omitir ou subestimar a importância de Caymmi na carreira de Carmen Miranda — que deve muito ainda dois outros compositores baianos, Assis Valente e Josué de Barros. “O que é que a baiana tem?” foi fundamental para a ida da cantora para os Estados Unidos e para a construção da personagem que lhe rendeu fama mundial. Ele declara à neta: “O negócio da omissão eu também estranhei muito, havia uma disfarçada má fé (…). O que se procura esconder é a realidade, porque os interesses são esses: a fábrica quer vender o disco, o artista não quer perder a fama, a imprensa é adulada pra não dar notas maliciosas, então havia tudo isso, não vai dizer que não que eu estava ali.”

Para Stella, a omissão “reflete o incômodo que o artista causava em alguns setores do meio artístico devido ao seu sucesso instantâneo e sua exitosa relação profissional com a cantora”. Ela continua: “Parece que dar a Caymmi, isto é, ao samba ‘O que é que a baiana tem?’, o peso devido na carreira de Carmen Miranda — e vice-versa — implicaria desvalorizar a cantora.” E mais: ele era um estreante e não pertencia ao grupo de compositores que “habitualmente orbitavam em torno da estrela, o que provocava muito ciúme”.

Outra contrariedade o levou a romper com a UBC. Em 1952, o presidente da instituição, Osvaldo Santiago, pediu a Caymmi e Alcyr Pires Vermelho que editassem suas canções na editora da UBC, para fortalecê-la frente às grandes editoras de música. Pires Vermelho recusou, alegando que não tinha música inédita naquele momento. A não ser que o baiano lhe desse uma parceria.

Segundo Stella, um constrangido Caymmi acabou cedendo a parceria de seu samba-canção “E eu sem Maria”. Ele explicou: “Todo mundo sabia que ‘E eu sem Maria’ era só minha. Quando ela foi registrada em nome de dois, eu fui tentando defender, não ele nem o Santiago, mas a minha classe, ajudando a minha classe a tomar um impulso.”

Jacques Klein lançou um disco dedicado ao repertório de Caymmi. Incluiu “E eu sem Maria” e, sem saber da suposta parceria, não deu os créditos. Pires Vermelho processou a gravadora. Com isso, o baiano “cortou relações com Osvaldo Santiago e Alcyr Pires Vermelho, retirou-se da UBC, transferindo-se para a Sbacem (Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música).”

E, quando em show pediam a canção, explicava: “Eu evito cantar esta música. Por enquanto estou chocado com os acontecimentos”. E nunca mais cantou “E eu sem Maria”. Stella resume: “A carreira de Dorival Caymmi foi repleta de riscos, embates, dramas e tensões, mas também pelo enfrentamento das dificuldades e pelos riscos corridos.”

Da Agência Brasil (Junho de 2011)

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