Nadjara Régis
É impossível não ficar estarrecida com determinadas interpretações da lei, ou, para melhor caracterizar, ausência de interpretação. Pois que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) precisou se manifestar para dizer a um grupo de magistrados – um da primeira instância e outros de segunda instância – o que é óbvio ao menos para as pessoas que não perderam o afeto, a fraternidade: uma criança em adoção não pode ser retirada de uma boa convivência familiar para hospedar-se aos braços invisíveis do Estado sem causar-lhe danos emocionais.
O caso é de uma criança com 2 anos e meses de idade, retirada do convívio familiar saudável por ordem judicial, sob a fundamentação de que a família adotiva não foi escolhida obedecendo a ordem cronológica do cadastro único para adoção, previsto no artigo 50 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Com isso, após dois anos de boas relações familiares, a criança de dois anos e meio de idade foi retirada do meio daqueles a quem já chamava de pai, de mãe e de avó, para ser internada em um abrigo e, em seguida, acolhida por outra família, obediente à ordem de “chegada” da lista de interessados (cadastro único) em adotar, à disposição na Vara Judicial.
Relator do caso, o Ministro Sidnei Beneti, da Terceira Turma do STJ, reafirmou a jurisprudência daquela Corte no sentido de privilegiar o interesse da criança evitando ao máximo o surgimento de situações agudas de padecimento, como as transferências para internamentos, ainda que transitórios, gerando cenas de extrema angústia e desespero, nocivos à criança e a todos. Seu voto concluiu que “só a inobservância da ordem estabelecida no cadastro de adoção competente não constitui obstáculo ao deferimento da adoção quando isso refletir o melhor interesse da criança”, e, ainda, ensinou que a previsão legal do cadastro único objetiva alcançar as hipóteses de tráfico de crianças e adoção por meio de influências escusas.
Imagino: o que fez aqueles magistrados operarem seu entendimento no sentido da falta de zelo à vida em vez de se arriscarem no sentido da falta de zelo à Ordem? Será que foi uma questão de opção hermenêutica? Será que foi ausência de interpretação? Ou será que lhes carece formação holística? Talvez lhes falte, simplesmente, sentimento, porque a tal da regra da imparcialidade deve lhes exigir uma completa ausência de sentidos. Aliás, após uma das aulas conduzidas pelo saudoso epistemólogo Luis Alberto Varrat, na Universidade de Brasília, uma aula de Direito e Surrealismo, disse-lhe eu minha preferência em introduzir o termo “estranhamento” em vez de “imparcialidade”, justamente porque o estranhamento remete a uma técnica pela qual o objeto de estudo deve ser persistentemente observado até que o artista consiga abandonar o conceito preestabelecido para poder recriá-lo sob seu ponto de vista. O termo imparcialidade, por sua vez, reduz a quase zero a energia criativa que deveria povoar uma decisão judicial; e digo criativa não para falar em criação do direito, e, sim, para levar ao julgamento a técnica de estranhar a norma e o fato e os personagens, contracenando, ele próprio, no palco daquela situação, para obter os sentidos – sentidos, de sentimento – da lide…
Mas a letra da lei já dava tantas dicas! O próprio artigo 50 que prevê o cadastro único para adoção também prevê como exceção o pedido de adoção de quem detém a tutela ou guarda legal de criança maior de 3 (três) anos ou adolescente, desde que o lapso de tempo de convivência comprove a fixação de laços de afinidade e afetividade, e não seja constatada a ocorrência de má-fé”. A meu ver, inclusive, a lei peca ao delimitar a idade, pois atos de violência podem afetar desde a vida uterina.
Enfim, o que dizer de uma sentença judicial pela qual uma criança de 2 anos sofre, e não seria demais configurar, um ato de violência institucional? Não seria justo a essa criança e sua família uma indenização por danos morais e materiais? Qual política de controle dos atos dos magistrados o Conselho Nacional de Justiça poderia implementar para retirar o direito dessa corda bamba, e, quem sabe, rechaçar de vez esse repugnante dito popular “de bunda de bebê e cabeça de juiz…”?
Nadjara Régis é advogada (Publicado no Blog do Fábio Sena)