Por Eron Rezende, da revista Muito
Ao ver as câmeras usadas pelo fotógrafo Fernando Vivas, Fernando Gabeira, 73 anos, se empolga. Fala de lentes, resoluções e captação de imagens. Deixou o Congresso em 2010 para concorrer ao governo do Rio de Janeiro. Perdeu e deixou a política – a de carreira, não a vivência da coisa. Voltou ao jornalismo aos 69, produzindo as próprias imagens para a Globo News e alguns vídeos institucionais para o Partido Verde, por isso o interesse tão grande pelas câmeras. Mas é no texto que a verve política ainda respira. A cada 15 dias escreve sobre o tema para O Estado de S.Paulo. Questionado sobre a eleição de 2014, Gabeira é categórico: “Me interessa quem está no poder, não quem quer chegar ao poder”. Em passagem rápida por Salvador, onde veio mediar a conferência do ambientalista francês Jean-Michel Cousteau no Fronteiras do Pensamento, ele falou à Muito no hotel, poucas horas depois de voltar de uma viagem para gravar mais um de seus programas de TV. Ainda que as imagens em ação tenham conquistado sua atenção, não se furta a falar sobre a situação do país, com a clareza e a dureza que lhe deu fama e desafetos entre os poderosos.
O que o senhor acha da ideia da Copa do Mundo no Brasil?
A ideia da Copa no Brasil foi uma irresponsabilidade histórica que, possivelmente, nem a vitória dentro do campo vai anular. Embora o Brasil hoje diga que não quer seguir os padrões da Fifa, era o sonho do Brasil seguir os padrões da Fifa e até suplantá-los. O Brasil propôs 17 cidades-sede, e a Fifa falou para fazer em 12. Construímos um estádio mais caro que o do Qatar, o estádio Mané Garrincha, que custou R$ 1,5 bilhão. E não é só o estádio Mané Garrincha. Nós construímos estádios em cidades onde eles não são necessários. O estádio de Natal nunca encheu, a não ser na visita do papa, mas você não pode pedir para o papa visitar o Brasil sempre, porque o papa não cumpre tabela. E aí não é a copa das copas, mas o mico dos micos.
Há algum ponto positivo?
O Brasil fez a Copa do Mundo sabendo que era um risco muito alto e que podia ser até compatível com ele porque achava que ia projetar a imagem do país de uma forma gigantesca. O que aconteceu foi o seguinte: a imagem do Brasil não foi projetada com a Copa do Mundo. Ela foi tumultuada, manchada. A cada instante, surgem na imprensa mundial todos os escândalos que estão acontecendo aqui. Alguns do nosso cotidiano e outros que são por causa da Copa. O objetivo inicial, que era projetar uma imagem positiva do Brasil, perdeu-se. A imagem projetada é quase caótica. E, às vezes, também nem corresponde à realidade. O Brasil não é tão caótico quanto parece, mas, de qualquer maneira, esta foi a imagem que se projetou. Nesse sentido, eu creio que os objetivos não foram alcançados e diria até que foram alcançados de forma contrária.
O senhor foi um manifestante histórico. Como avalia as manifestações recentes?
Se eu pudesse simplificar, diria que as manifestações atuais são pós-modernas. As nossas eram pré-modernas e modernas. Elas são pós-modernas no sentido de que não têm enredo, não têm uma perspectiva de desenvolvimento, um plot ou se desenvolvem progressivamente. Assim como os filmes de agora. O [Fredric] Jameson, crítico de cinema americano, diz que alguns filmes atuais nem se importam com o enredo, mas só com a ação. E as ações pós-modernas são feitas sem nenhuma perspectiva de futuro e se esgotam nas próprias ações.
E a ação violenta de alguns grupos?
Quase todo movimento de massa tem momentos de fluxo e de refluxo. Quando um movimento de refluxo começa, alguns grupos violentos entram em cena também tentando substituir as massas, reconduzi-las à luta sob a liderança deles. Nós temos uma série de ações – como a passeata dos 100 mil no Rio de Janeiro -, que, quando refluiu, deixou o movimento armado entrar em cena. Numa espécie de desespero, numa tentativa de preencher o vazio das manifestações. Essa eclosão de coisas violentas se dá exatamente em um momento em que ela avançou, no momento em que as pessoas deixaram as ruas.
O Black Bloc prometeu instaurar o caos durante a Copa. Quando a violência começa, a política termina?
Eu reconheço o Black Bloc como um movimento equivocado. Ele, na verdade, é um aliado do governo, da ordem estabelecida, porque, ao fazer o que faz, só fortalece a repressão e o desejo de repressão.
O senhor disse que havia largado a política porque política é um bordel. Se a política é um bordel, quem são as cafetinas, clientes e prostitutas?
Eu cito a frase do [Friedrich] Dürrenmatt [dramaturgo suíço], que eu atribuo ao PT. “O mundo fez de mim uma puta, eu vou fazer do mundo um bordel”. E o PT é isso. Para chegar ao poder, ele teve que fazer uma série de concessões e, agora, ele envolve todo mundo com o mesmo critério. Compra todo mundo que pode comprar com cargos, com favores, ameaças. É claro que não se pode dizer que o PT é o único responsável por essa situação. Ele tem aí o [José] Sarney, o Renan Calheiros. O PT apenas continuou, aperfeiçoou e de uma certa maneira abrilhantou a corrupção.
O senhor voltaria à política?
As manifestações foram contra a política e na expectativa de que houvesse uma mudança. Não há ninguém que possa, de certa maneira, pensar em atender a essas aspirações, porque as pessoas que fizeram essas manifestações, de modo geral, não reconhecem mais na política convencional e eleitoral um instrumento adequado de luta. Além disso, a política eleitoral foi dominada por um cinismo e por uma capacidade de organização institucional que impedem qualquer mudança real e que estigmatiza quem deseja mudar. Isola e estigmatiza. E, por isso, não há sentido para mim em voltar à política. Primeiro, se as pessoas que eu gostaria de ajudar abominam a política e, segundo, se dentro da política existe uma organização tão sólida que impede fazer qualquer coisa. Então, eu não cogito voltar à carreira política, considerando as circunstâncias atuais. Se houver uma mudança no horizonte e a sociedade brasileira mudar e achar, em determinado momento, que é preciso de políticos e que é preciso de políticos que possam realizar as suas aspirações, posso considerar, mas no momento não.
O senhor está mais feliz agora?
Estou. Eu voltei à minha profissão de jornalista… Durante muito tempo trabalhei no jornalismo analógico, depois passei ao digital, escrevendo e fotografando. E agora eu dei um outro salto, agora eu faço imagens em movimento.
Sua tanga ainda é uma das imagens mais icônicas dos anos 1980 no Brasil. Recentemente, um artista baiano desfilou de maiô e as reações foram bem conservadoras. Estamos falando de 34 anos entre sua tanga e esse menino. A sociedade ainda está muito careta?
Isso se resolve com o tempo e com os avanços do capitalismo. Nas cidades mais avançadas do mundo, ninguém fica preocupado com o que você veste, desde que não haja uma evidente agressão, ninguém está preocupado. No capitalismo mais desenvolvido, o indivíduo ganhou uma autonomia que ele não tinha no passado. A modernidade superou e tirou a magia do mundo. Ela mostrou o mundo real, as igrejas e religiões perderam a capacidade de explicar o mundo. Segundo, porque a própria família perdeu uma estrutura básica que ela tinha no passado. Os partidos políticos e as entidades perderam. O indivíduo ficou só e também livre no sentido de que ele pode fazer o que quiser nesse campo e ninguém vai observar. É um problema do capitalismo. Não quer dizer que os americanos são menos caretas. O Brasil vive uma duplicidade. Jamais se conseguiu no Brasil fazer um topless. Se as meninas fazem topless, junta muita gente para ver, há quem jogue areia, mas, no entanto, no Carnaval todo mundo fica pelado e as pessoas aplaudem. É uma duplicidade típica do brasileiro.
Por falar em caretice, 2010 foi uma campanha bem careta. Legalização do aborto e da maconha foram temas usados para atacar adversários em vez de discuti-los de fato. O que esperar desta eleição e desses candidatos?
A mesma coisa, porque os candidatos não têm ainda uma dimensão a ponto de serem perdoados pelas suas ideias. Você só consegue isso quando demonstra ao eleitor que você é um democrata, que pensa muitas coisas, mas é um democrata, que jamais fará passar ideias que são suas como se fossem da maioria. E que, uma vez no governo, você vai realizar as ideias que foram combinadas e projetadas durante as eleições. É muito difícil que as pessoas confiem. Eu tenho eleitores que são contra a legalização das drogas, aborto e homossexualidade, mas têm uma confiança de que, caso eu chegue ao governo, jamais vou traí-los no sentido de fazer passar as minhas ideias como se fosse da maioria. Os políticos convencionais não conseguem estabelecer, para o eleitor, essa distinção entre o conjunto das ideias e o que vai realizar em conjunto com eles.