A mãe do cineasta Glauber Rocha, Lúcia Rocha, morreu no começo da tarde desta sexta-feira (3/1), no Rio de Janeiro. O falecimento foi confirmado por Paloma Rocha, neta de Lúcia e filha de Glauber, via Facebook. A morte se deu por causas naturais, segundo outro neto de Lúcia, Henrique Cavalleiro.

De acordo com Paloma, o velório será realizado esta noite, na Fundação Tempo Glauber, também na capital fluminense. A mãe de Glauber Rocha tinha 95 anos e participava ativamente da Fundação dedicada à memória da obra do cineasta, expoente do cinema novo nacional. (Informações do Correio Braziliense)

SOBRE DONA LÚCIA

Nascida em Vitória da Conquista, Dona Lúcia Rocha casou-se com Adamastor e, com ele, tiveram três filhos: Ana Marcelina, Glauber e Anecy. Como numa tragédia grega, Dona Lúcia perdeu os três. Ana Marcelina foi a primeira, ainda adolescente, quando uma leucemia a tirou da vida inesperadamente, causando, com isso, imenso choque na família. Em 1976, a talentosa Anecy, atriz no auge de seu sucesso, cai, de repente, no poço do elevador do prédio onde morava. Apenas cinco anos se passariam para que Glauber viesse também a morrer. Como se diz, geralmente os filhos é que enterram os pais, mas no caso dessa mãe coragem, ela enterrou os seus três filhos.

Também o marido, Adamastor (dono daquela loja que ficava logo na entrada da rua Chile, Loja Adamastor), sofrera acidente automobilístico que o deixara sem o vigor de antes, e Dona Lúcia tinha que se desdobrar para manter o equilíbrio da família. O casarão da rua General Labatut, número 14, Barris, era o point onde se reuniam os jovens intelectuais que queriam fazer cinema na Bahia. A pensão de Dona Lúcia, com o passar do tempo, foi ficando famosa a tal ponto de hospedar artistas e intelectuais que vinham do eixo Rio-São Paulo. Devia, o casarão hoje em ruínas, ser tombado como patrimônio cultural baiano.

Dona Lúcia, ao contrário das mães tradicionais, sempre incentivou Glauber a fazer cinema. Adolescente, ela, ao invés de lhe dar um automóvel, como todo jovem deseja, deu a ele, consultado, uma câmera 16mm para filmar. Quando das filmagens de “Barravento” (1962), na praia de Buraquinho, distante da cidade, Dona Lúcia preparava quarenta marmitas para que o pessoal da equipe técnica não ficasse sem almoçar – a produção dava apenas para se fazer o filme e muito mal para alimentar seus participantes. Embora não creditada (o único, segundo ela, que a creditou foi Joaquim Pedro de Andrade em “Os inconfidentes“, de 1972), Dona Lúcia fez alguns figurinos de “Deus e o diabo na terra do sol” e “O dragão da maldade contra o santo guerreiro” (1969), entre outros filmes do filho querido.

O mais incrível é que Dona Lúcia pulou uma fogueira também no que diz respeito à sua saúde. Há oito anos atrás, quase aos 90, submeteu-se a uma cirurgia de revascularização miocárdica, a famosa ponte de safena. Na sua idade, e a considerar ser uma operação bastante invasiva, Dona Lúcia tirou de letra. E não é a primeira que faz.

Há 20 anos, submeteu-se à mesma cirurgia, sempre com êxito considerável. Uma vez, perguntei a ela o que era colocar uma ponte de safena. Me respondeu: “André, está vendo aquela estrada de asfalto, deite-se ali e sinta um caminhão pesado passar por cima de você!”.

Morto o filho querido, o realizador Glauber Rocha, cujo reconhecimento internacional é indiscutível, Dona Lúcia resolveu se dedicar “full time” à preservação da memória do autor de “Deus e o diabo na terra do sol” (1964), e, para isso, criou o Templo Glauber. A princípio, na primeira metade dos anos 1980 (o cineasta morreu em agosto de 1981), Dona Lúcia pretendeu instalar o acervo memorialístico do filho em Salvador, mas não encontrou apoio. Segundo ela, foi “enrolada” e, no final das contas, para não perder a oportunidade, aceitou o convite do Museu da Imagem e do Som para o depósito do material do filho.

Da Imagem e Som, o Templo Glauber se mudou para um casarão em Botafogo, mas o percurso, para conseguir sobreviver às intempéries, foi cheio de atropelos, principalmente quando, em 1990, houve o confisco promovido por Fernando Collor, que provocou um trauma imenso no funcionamento do templo dedicado ao cineasta. (Do CineEsplendor)

Confira a pequena entrevista realizada por Ricardo Westin, do Jornal do Senado, em 2011.

0015Como era o filho Glauber Rocha?

Enquanto todas as crianças da idade dele estavam na rua, brincando de peteca ou bola de gude, ele ficava dentro de casa, lendo e escrevendo. Aquilo me chamava a atenção. “Minha mãe, minha cabeça é um vulcão”, ele explicava. Eu entendi que, lendo e escrevendo, ele dava um jeito de expelir todas as ideias que tinha dentro da cabeça. O curioso é que Glauber detestava a escola. Uma vez, ele brigou com a professora e veio para casa dizendo que não queria mais voltar. Ele achava a professora fraca. Queria que eu o ensinasse a ler e escrever. E, de fato, fui eu que o alfabetizei.

Dos filmes de Glauber, qual é seu favorito?

Meu favorito é Barravento. Sabia que ele planejou esse filme quando tinha sete anos? Estávamos passeando na praia de Buraquinho, na Bahia, e ele, criança, disse: “Quando crescer, vou fazer um filme aqui”. Anos mais tarde, ele voltou lá para fazer Barravento. O filme é muito bonito. Eu participei de todos os filmes que Glauber fez no Brasil. Eu costurava as roupas, fazia comida para os atores… Ajudei com dinheiro também. Eu era rica e, por causa do cinema, fiquei pobre. Mas não me arrependo. Valeu a pena. Se outro filho quisesse fazer cinema, ajudaria do mesmo jeito.

A senhora cuida do Tempo Glauber, um espaço que guarda 100 mil documentos. Foi difícil reunir um acervo tão amplo?

Eu comecei a juntar o material quando ele tinha nove anos. O primeiro documento é o roteiro de uma peça de teatro que ele encenou no colégio. Tenho até anotações que ele fazia em papel, amassava e jogava fora. Eu corria ao lixo, pegava o papel, passava com ferro e guardava. Minha missão, hoje, é reunir, conservar e divulgar toda a produção de Glauber. Tenho fotos, poemas, cartas, entrevistas publicadas, desenhos, roteiros que nunca chegaram a ser filmados. As pessoas vêm aqui, interessam-se pelos roteiros, mas ninguém tem coragem de fazer os filmes. Seria muita responsabilidade. Quando Glauber foi morar na Europa, ele me pediu que eu cuidasse de todo o material dele. Jurei que cuidaria de tudo e que, assim, ele nunca morreria. E, de fato, ele nunca morreu – porque o artista nunca morre.

Como superar a perda de três filhos? 

Eu tenho uma dificuldade. Mas, não sou uma pessoa depressiva. Quando começo a sentir uma depressão, eu creio em Deus, falo com Ele e resolvo. Sofri muito. Larguei dentro de mim aquela dor. Estou agora comemorando minha trineta, que se chamará Lúcia também. Vivi minha vida toda pela minha família. Glauber, Ana Marcelina, Anecy, Ana Lúcia. Só sobrou a Ana Lúcia. Mas procurei vencer. Quando me perguntam: “Do que Glauber morreu?”, eu digo: “De Brasil”. A época da ditadura… Tudo muito injusto. Foram cinco anos no exílio. No caso de Anecy (a atriz morreu ao cair em poço de elevador aos 34 anos), fiquei com raiva de elevador muito tempo. Mas, entendi que o elevador é como a vida: sobe e desce. (Esta última foi em entrevista do Diego Ponce de Leon, do Correio Braziliense)

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