Por Flávio Weinstein Teixeira, da Revista de História (Setembro de 2007)

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Ao falecer, a 13 de agosto de 2005, Miguel Arraes promoveu o último ato de uma longa vida voltada para o mundo da política. Tinha 88 anos e mais de meio século de vida pública. No dia do velório, uma multidão de milhares de seguidores e admiradores postou-se em frente ao Palácio do Campo das Princesas sede do governo do estado de Pernambuco. Colocaram-se ali em fila, com a pachorra dos fiéis, para se despedirem daquele estranho homem que sabia fazer vibrar seus sentimentos. E embora estivessem distantes os tempos em que a crença no “mito” Arraes era de tal ordem que chegavam a considerá-lo uma espécie de messias capaz de fundar uma nova era de liberdade e bonança, ainda assim, naquele momento, diante de seu corpo, algo dessa chama permanecia ardendo naquele povo todo.

Aguardavam apenas a oportunidade de ver e tocar, uma última vez, aquele homem miúdo, de cabeça enterrada nos ombros, cuja carantonha marcada pelo indefectível bigode sempre bem aparado, por aqueles olhos grandes e injetados e uma boca larga de onde saía uma voz rouca, gutural era a própria expressão de uma pessoa incomum. Não que fosse, evidentemente, um predestinado, como muitos de seus seguidores se habituaram a considerá-lo, sobretudo os mais humildes e rudes. Mas, precisamente porque foi capaz de despertar neles esse sentimento desmedido mais ainda porque logrou manter viçosa, mediante uma cuidadosa administração de sua carreira política, essa imagem de guia, Arraes se diferenciava do comum dos líderes políticos de esquerda.

Dito assim, pode parecer que ele não passava de um político carismático e populista que manipulava os segmentos mais ignorantes e depauperados da população. Não se tratava disto. Arraes conquistou um lugar de destaque na esquerda brasileira em decorrência da liderança que exerceu e das posições que defendeu num período de agudo acirramento da luta política no Brasil os dez anos que antecederam o golpe de 1964.

02647b2ad34ce63e3acc8daaa2cab4c5533Filho de uma família de proprietários rurais, Arraes nasceu no interior do Ceará (em Araripe, em 15 de dezembro de 1916), e de lá saiu aos 16 anos para o Rio de Janeiro, a fim de cursar Direito. Mal havia concluído seu primeiro ano do curso quando ingressou nos quadros do Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), o que o obrigou a mudar-se para aquela que se tornaria a sua cidade, Recife. Capital do principal estado produtor de açúcar, era lá que se concentrava a maior parte das atividades do Instituto. Com exceção do período em que esteve exilado na Argélia, entre 1965 e 1979, viveu sempre no Recife, e a partir dali se projetou politicamente, no início vinculado ao partido que, saído das entranhas do Estado Novo, por longos anos dominou a política pernambucana, o PSD (Partido Social Democrata). Na verdade, embora nutrisse certa admiração por Agamenon Magalhães (principal líder do Estado Novo e do PSD em Pernambuco), foi pelas mãos do recém-eleito governador Barbosa Lima Sobrinho (1948-1950) que Arraes se viu catapultado ao cargo de titular da Secretaria da Fazenda, em 1948.

Nas duas eleições seguintes, 1950 e 1954, conseguiu eleger-se deputado estadual. Em 1958, derrotado nas urnas ao tentar renovar seu mandato de deputado, Arraes vê-se alçado, pela segunda vez em dez anos, ao cargo de secretário estadual da Fazenda, só que agora do governo recém-eleito de Cid Sampaio (1958-1962). Em 1959, foi indicado candidato a prefeito do Recife pela Frente do Recife, uma aliança de esquerda entre PCB, PSB, PTB e nacionalistas independentes abrigados em partidos menores que dominou político-eleitoralmente a capital de Pernambuco e a região metropolitana no decênio que antecedeu o golpe de 1964.

Visto pela lógica de hoje marcada pelos imperativos da globalização, da flexibilização dos direitos e das garantias sociais e trabalhistas, da fragilização das estruturas e prerrogativas do Estado em detrimento daquelas outras próprias do mercado, não é fácil entender a emergência e crescente centralidade que os temas populares e nacionais adquiriram ao longo dos anos 1950. A firme crença de que a “emancipação nacional” era não apenas desejável, mas que poderia ser alcançada dentro de um prazo razoável, foi algo que marcou muito a sensibilidade da época.

Uma versão mais radical desse nacionalismo, defendida por setores das esquerdas e dos movimentos sociais, tingiu-se com as cores quentes dos “interesses populares”. Acreditava-se que somente de par com a afirmação desses interesses é que se poderia caminhar em direção a uma verdadeira emancipação da nação. Foi por ter-se identificado com esse ponto de vista que Miguel Arraes obteve os apoios necessários para alçar sua carreira a um novo patamar. E dificilmente haveria um lugar mais propício para um político com o seu perfil nessa época do que Recife.

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Na qualidade de metrópole regional, era para Recife que convergiam, e onde com mais contundência se manifestavam, as crônicas tensões sociais e políticas que marcavam o Nordeste brasileiro. Conflitos de todas as naturezas, que se acirraram a partir da segunda metade dos anos 1950. Greves, reivindicação de direitos por parte de pequenos camponeses, invasões de propriedades, saques, passeatas, manifestações e proclamações das mais diversas entidades (CNBB, partidos políticos, associações de classe etc.). O Nordeste, definitivamente, era considerado, por amplos setores da opinião pública nacional, um sinônimo de caos e de atraso. Uma ameaça à nação, ao seu desenvolvimento e, sobretudo, à paz nacional, à boa ordem das coisas.

Primeiro como prefeito do Recife (1959-1962) e logo em seguida como governador de Pernambuco (de janeiro de 1963 a março de 1964), Miguel Arraes deu um aspecto popular a suas administrações, projetando-se como um líder de esquerda de dimensões além do meramente regional. Em meio à complexa e polarizada disputa política que antecedeu a intervenção militar de março de 1964, o nome de Arraes passou a ser seguidamente lembrado como um candidato de peso à sucessão de João Goulart.

Com o golpe militar, apeado do poder, preso, exilado a partir de maio de 1965, Arraes foi mantido afastado da política brasileira até a anistia, em 1979. Ao retornar, elegeu-se primeiro deputado federal (1982-1986) e, em seguida, governador de Pernambuco (1986-89). Já desde a campanha mas prosseguindo ao longo de todo esse seu segundo governo, tentou-se cercar Arraes de uma imagem mítico-salvacionista. A lembrança que se tinha de sua primeira administração prestava-se bem a este tipo de estratégia.

De fato, não havia grandes dificuldades em se trabalhar sua imagem como a de alguém comprometido com a redenção dos oprimidos e marginalizados. Afinal, fora ele quem promovera o Acordo do Campo, em 1963, garantindo direitos trabalhistas a trabalhadores rurais. Fora ele quem enfrentara um lockout e um boicote dos proprietários, chegando a confiscar mercadorias a fim de assegurar o abastecimento popular. E também criara o Movimento de Cultura Popular, permitindo o desenvolvimento de um inédito movimento em favor da educação de jovens e adultos trabalhadores. Além disso, Arraes urbanizara amplas áreas da cidade de Recife e apoiara irrestritamente a utopia desenvolvimentista da Sudene, criada no fim do governo JK para concentrar os esforços de planejamento e investimento públicos no Nordeste. E, enfim, fora ele quem colocara o poder público como mediador dos conflitos sociais e não mais como um extenso “aparelho repressor”.

Possuidor de um capital político desta monta, Arraes exerceu seu segundo mandato como governador um tanto alheio à grave crise econômica, fiscal e inflacionária que se abateu sobre o Estado brasileiro. A manifestação mais evidente dessa crise foi a “falência” do poder público, incapaz, daí por diante, de custear a contento tanto a burocracia estatal quanto, e sobretudo, os muito necessários investimentos públicos em infra-estrutura, educação, saúde etc. Em Pernambuco, essa crise se apresentou muito forte e tendia a desgastar seriamente a administração de Arraes. O que, contudo, não ocorreu. Graças a essa circunstância, ele obteve em 1990, quando de sua eleição para deputado federal, uma votação incomum. A maior, em termos proporcionais, de todo o país. Entretanto, sua liderança se restringia cada vez mais ao âmbito local. Nacionalmente, seu nome já não despertava maiores expectativas.

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Em 1994, elegeu-se governador de Pernambuco pela terceira vez. O resultado, no entanto, foi melancólico. Um governo insignificante, pífio. Por fazer oposição frontal ao governo Fernando Henrique Cardoso, ficou sem acesso às verbas federais. E, incapaz de reposicionar a economia do estado frente às mudanças que estavam se operando nos planos nacional e internacional, no fim do seu mandato o sentimento mais freqüente em relação a ele era de decepção. Um desalento. Em 1998 já não tinha o prestígio, o respeito e nem mesmo o apoio popular de antes. Concorrendo a um quarto mandato de governador, foi fragorosamente derrotado por um antigo aliado que, no início dos anos 1990, havia se tornado um de seus maiores desafetos Jarbas Vasconcelos.

Desde então, Miguel Arraes vivia numa espécie de ostracismo político. É verdade que a eleição, em 2002, de Luiz Inácio Lula da Silva para presidente (a quem apoiou firmemente em todas as tentativas anteriores), significou uma vitória importante para Arraes inclusive no sentido de conquistar novos espaços no cenário político nacional. Nada, porém, que pudesse recompor o viço de uma carreira política que se fizera na linha de frente do combate em favor de um projeto mais solidário de nação. E que, derrotado em sua utopia, seguira mantendo a convicção de que somente um programa político de base nacional-popular poderia vir a emancipar o Brasil das estruturas que só têm perpetuado e aprofundado o gritante hiato social que, de longa data, o marca e caracteriza.

velorioO que aqueles milhares de pessoas que acompanhavam seu corpo em direção ao Cemitério de Santo Amaro talvez estivessem querendo dizer é que, para eles, ninguém melhor que Arraes soube despertar a esperança de que sempre é possível mudar isso.

Flávio Weinstein Teixeira é doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

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