Por Mariana Kaoos
Era menino. Nasceu numa noite fria e estrelada, no alto das montanhas da Judéia, em Hebron, a oito milhas de Jerusalém. Quando da sua boca pequena e banguela ecoou o primeiro choro, todos comemoraram a mais nova vida que estava ali. Seu pai exibia um brilho intenso nos olhos e pulava em exaltação. Acenderam uma fogueira, entoaram cantigas, oraram em agradecimento aos céus. Era menino de pele alva e bochechas rosadas. Veio ao mundo com olhos abertos, observando tudo ao seu redor.
O outro também era menino. Nasceu em Oyo, terras africanas férteis e verdejantes. Sua pele, negra como a noite, contrastou com o intenso vermelho que o sol exibia naquela tarde de inverno que não parecia inverno. Ele, o Astro Rei, se punha como uma bola de fogo saudando o menino que chegava. Mas não só. Após um trabalhoso parto, quando finalmente o menino saiu do ventre de sua mãe, todos ao redor se curvaram diante dele, e, em seguida, começaram a dançar, como se estivessem realizando algum ritual.
Era divino. O menino branco era divino. Assim como o que precedeu seu nascimento. Dizem por aí, que seu pai era um sacerdote do alto escalão. Se chamava Zacarias. Um senhor já de idade, com longa barba branca. Zacarias, temente às forças divinas, uma vez suplicou em oração que Deus lhe pudesse conceder um filho. E assim ele o fez. Vindo diretamente da casa celestial, o anjo Gabriel desceu à Terra e foi ter uma conversa com Zacarias, que se pôs cético diante das palavras proferidas por ele. Gabriel, mesmo sendo anjo, num instante se exaltou e disse que o sacerdote iria sofrer o castigo de perder a voz, mas só até que a gravidez de sua mulher, Isabel, se confirmasse, e ele pudesse enfim acreditar. E bem desse jeitinho tudo se cumpriu. Após recuperar a fala, Zacarias se tornou um homem com mais fé do que antes. Já não era mais o mesmo.
Era divino também. O menino preto das terras de Oyo era divino também. Nada precedeu seu nascimento, mas, após a ele, as coisas se transformaram naquele lugar. O menino era imponente. Tinha ar imperial. Olhos amendoados grandes e firmes. Desde muito novo se portava como alguém viril e justiceiro. Não tolerava injustiças. Seu pai, Oranian, o ensinou inúmeros valores que julgava como íntegros. No entanto, parecia que o menino preto já havia nascido com todos eles. Vez por outra, em tardes que mesclavam brincadeiras e ensinamentos, era o menino quem falava desses valores ao pai e aos meninos de sua idade, que sempre estavam mais interessados em subir em árvore e correr por aí.
O menino branco teve uma infância bela e plena. Tudo bem, seus pais foram zelosos ao extremo, mas isso não o impediu de trabalhar o amor e a disciplina em seu coração. Abençoado desde a barriga pelo Espírito Santo, seus pais quase desconfiavam que o menino fosse santo, de tão perfeito e exemplar. Só tinha um terrível defeito: o da gula. O menino comia o tempo inteiro, principalmente se tivesse milho no meio da história. Era canjica, bolo de milho, milho assado, pamonha. As bochechas que já eram rosadas e grandes desde o nascimento, se tornaram ainda maiores e mais rosadas com o passar dos anos. Como as brincadeiras do momento sempre envolviam esforço físico, o menino saia de casa apenas para observar as pessoas e refletir sobre elas. Seu compromisso com a fé se intensificava a cada instante.
O menino preto deixou a infância, virou jovem, robusto, extremamente belo e sério. Com a juventude não veio apenas as transformações físicas. Outras forças surgiram ao longo do percurso. O jovem preto passou a ter controle de alguns elementos da natureza. Seu contato com ela sempre foi muito próximo, mas, na medida em que ele ia crescendo, isso se intensificava dentro de si. Então primeiro foi o fogo, depois os raios e trovões. Ao completar certa idade, ele ganhou um machado mágico de seu pai. A sua crença e a sua força residiam nele.
O menino branco também cresceu. Ao se tornar jovem, perdera peso e optara por uma vida de reclusão no deserto. Foi buscar santificação. Passou a trajar apenas pele de camelo e tinha os rins cingidos com uma cinta de couro. Nessa época ele comia apenas gafanhotos e mel silvestre. Ao se tornar homem, com trinta anos, recebeu um chamado divino para deixar o deserto e anunciar a vinda do Messias, preparando-lhe os caminhos que ele iria trilhar. Assim o homem branco o fez.
Ambos, cada qual a sua maneira, seguiram o chamado. O homem branco lá pelas terras de Jerusalém. O homem preto, que agora era rei, em Oyo e outros lugares da África. O que ocorreu daí por diante são inúmeras histórias que se engendram na própria narrativa da humanidade. O que interessa falar agora é que os dois, o homem preto e o homem branco se tornaram imortais. Duas grandes forças fizeram com que isso acontecesse: a igreja católica e o candomblé. Mas não só. A crença e a fé humana também são a força motriz dessa permanência no infinito. O homem branco ganhou uma festa e uma data específica, que já é tradição de fogos, comidas com milho e missas por igrejas a fora. O homem preto ganhou um dia específico da semana, toda quarta-feira, e cânticos e danças exclusivos apenas para si.
Depois de muito tempo ambos se encontraram numa palavra chamada sincretismo. Ela transformou o homem preto e o homem branco numa só pessoa, numa só força e num só amor. Há quem goste só de um. Há quem diga que são duas grandes contradições. O profano e o sagrado. O bem e o mal. Mas há também quem veja ambos, não mais humanos, como forças naturais que predizem o acalanto espiritual e a paz de espírito que todos tanto almejam.
João. O menino branco é João. E Xangô. O menino preto é Xangô.
*Esse conto é uma homenagem a João e Xangô, mesmas divindades de amor dentro de mim.