Por Raimundo Pereira e Lia Imanishi, na revista Retrato do Brasil
O voto histórico do ministro Celso de Mello, que reabriu, nesta quarta-feira, o debate sobre o “Mensalão” no STF, não desenhou apenas uma risca de giz contra o ataque aos direitos civis. Ele pode ter criado condições para questionar um consenso que a mídia construiu ao longo dos últimos oito anos.
O que há de errado com o sistema político brasileiro? Atos individuais, comandados por mentes corrompidas, que deformam nossa “democracia”? Ou algo mais profundo: leis e práticas que permitem a grandes empresas formar bancadas parlamentares, influir decisivamente na escolha dos governantes, sequestrar a política?
O julgamento do “Mensalão” é decisivo porque coloca as duas hipóteses claramente em choque. A grande maioria dos brasileiros crê que se tratou de um desvio de dinheiro público. Há cerca de dois anos, os jornalistas Raimundo Pereira e Lia Imanishi tentam mostrar, por meio de uma série de reportagens publicadas na revista “Retrato do Brasil“, que esta visão é ingênua. Dirigentes do PT transferiram cerca de R$ 55 milhões, arrecadados junto a empresas, para correligionários e aliados, de forma ilegal. Deveriam ser condenados por isso. Mas o STF não investigou tais atos. Preferiu criar uma ficção: a de que os petistas teriam subtraído estas somas do Banco do Brasil.
Tal escolha não foi fortuita. Crimes eleitorais, relacionados a financiamento de campanhas, são corriqueiros na política brasileira. Para enfrentá-los seria preciso mudar o sistema político — proibindo, em especial, que as empresas sustentem e submetam, a seus interesses particulares, os partidos e seus membros. Haveria uma pequena revolução. Centenas de dirigentes partidários, de todo o espectro ideológico, seriam punidos. Muito mais importante: o poder econômico perderia um instrumento essencial para definir prioridades do Estado e fechar contratos favorecidos. Ao invés de enfrentar tal tema, o STF preferiu encarcerar alguns indivíduos. É truque antigo: sacrificar bodes expiatórios sempre ajudou a distrair atenções e manter injustiças.
A longa reportagem publicada abaixo resume o trabalho de dois anos de Raimundo Pereira e Lia Imanishi.
1.
Ponto de vista
UMA JUSTIÇA QUE FAZ LEMBRAR
OS TEMPOS MEDIEVAIS
No julgamento da Ação Penal 470 (AP 470), diante da crítica dos advogados de defesa de que não havia provas contra os acusados e de que eles estavam sendo condenados apenas por indícios, em desrespeito ao Código de Processo Penal brasileiro, vários ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) se preocuparam em explicar que em casos que envolvem, segundo eles, pessoas muito poderosas, capazes de limpar os rastros deixados por suas ações criminosas, o uso dos indícios é frequentemente a única e legítima forma de fazer justiça. O argumento é compreensível quando juízes se veem diante de crimes clamorosos, evidentes – os quais, como se diz, clamam aos céus por punição – e quando, de fato, indícios abundantes e sugestivos ligados ao crime apontam para os culpados.
No caso, no entanto, no julgamento do famoso “mensalão”, não se tratava da existência de dificuldades para ligar supostos criminosos a um crime bem determinado. O problema dos juízes foi que eles não se preocuparam em primeiramente provar a existência do crime para depois procurar as ligações dos culpados com o crime já então devidamente caracterizado. É por essa razão que, a nosso ver, se fez um tipo de justiça que faz lembrar os tempos medievais. Uma comparação boa é com o julgamento das chamadas feiticeiras de Salem, um lugarejo na província de Massachusetts, então uma das colônias inglesas que formaram os atuais Estados Unidos da América. O julgamento foi dramatizado por um dos maiores escritores do teatro americano, Arthur Miller. Mas o fato existiu e sua sentença final foram vários enforcamentos.
Miller (1915–2005) escreveu a peça The Crucible em 1953, como uma alegoria voltada contra o espírito das investigações feitas pela Comissão de Inquérito sobre as Atividades Antiamericanas, formada no Congresso dos EUA e dirigida pelo senador Joseph McCarthy. Hoje, ela é vista como um exemplo “da prática de fazer alegações e de usar técnicas de investigação injustas a fim de restringir o dissenso e fazer acusações políticas”, como diz a Wikipédia. Em português, a peça de Miller chama-se As bruxas de Salem (Ediouro, 1997) e é uma boa leitura para se entender essa recidiva da justiça medieval no Brasil de hoje. Uma epidemia, desconhecida para os moradores, assolou a região entre 1692 e 1693 e atingiu muitas crianças. Por uma série de interesses econômicos e pessoais, foi transformada, afinal, num crime de bruxaria. Na história dramatizada, tem papel destacado na condenação dos réus um juiz pretensioso que, segundo o próprio Miller, é o verdadeiro vilão da história. Esse personagem se proclama extremamente fiel aos regramentos da Justiça, mas, no fundo, sabe ser o julgamento das bruxas uma mentira. Não perdoa ninguém, para não deixar pairarem dúvidas sobre sua reputação teocrática.
Pode-se dizer que as ideias da justiça medieval foram superadas nas civilizações ocidentais modernas pelo Iluminismo, a também chamada Idade da Razão, dos séculos XVII e XVIII, que promoveu o conhecimento científico, em detrimento da superstição, da tradição e da fé. No direito, um de seus grandes intelectuais é o italiano Cesare Beccaria (1738–1794), autor de Dos delitos e das penas, de 1764. É o primeiro grande trabalho ocidental sobre o conjunto de questões a serem debatidas com vistas a uma reforma das prisões e das penas, de um ponto de vista mais racional. Beccaria se insurgiu contra os julgamentos secretos e as torturas, empregadas como meio de obtenção de provas. Muitas das reformas dos códigos penais europeus da época acharam inspiração em sua obra.
A tortura, praticada sob diversas formas ao longo dos séculos, ainda servia, oficialmente, na época de Beccaria, como meio de obter provas de crimes. As bruxas, acusadas de ligação com o demônio, eram torturadas até a confissão. Se não confessavam, como lembrou o irônico cientista Carl Sagan numa de suas obras, é porque o pacto que tinham com o mal era suficientemente forte para fazê-las suportar as torturas e, dessa forma extravagante, no fundo confessarem seus vínculos malditos. Um dos princípios essenciais para destruir resquícios da justiça medieval – resquícios que, por estranhos caminhos, persistem até hoje – é obrigar os acusadores a provar o que se chama de “materialidade do crime”. O crime não pode ser uma intenção, uma hipótese. A bruxa não pode ser condenada por matar o papa se o papa estiver vivinho da silva. Um maluco qualquer, flagrado num grampo telefônico de um araponga, mesmo que oficial, dizendo que matou a presidente da República que continua bela e formosa, não deve ser levado a sério. Portanto, como diria Beccaria, não se pode partir em busca dos criminosos sem, em primeiro lugar, caracterizar, materialmente, o crime.
No caso do mensalão, o STF, por mais incrível que possa parecer, não exigiu dos acusadores essa providência fundamental. O julgamento do mensalão acabou sendo uma espécie de exorcismo para tentar combater a terrível epidemia de corrupção que existiria no País há séculos e que teria tido, com os petistas e o governo Lula, um surto espetacular e promovido “o mais atrevido e escandaloso esquema de corrupção e de desvio de dinheiro público flagrado no Brasil”, como disse, em seu pedido de condenação dos réus do mensalão, perante o STF, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel.
Mas qual foi exatamente esse histórico e gigantesco crime? Como mostraremos a seguir, o mensalão foi uma espécie de maldição aspergida pelo ex-deputado Roberto Jefferson sobre um esquema de financiamento eleitoral por meio do qual o partido do presidente Lula e de seu ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, distribuiu, entre 2003 e 2004, cerca de 56 milhões de reais para vários de seus filiados, para o marqueteiro de muitas de suas campanhas, Duda Mendonça, e para vários partidos da chamada base aliada. O esperto Jefferson, que recebeu parte desse dinheiro, disse: o meu foi caixa dois, o dos outros foi mensalão.
O mensalão, segundo Jefferson, era um esquema de compra de deputados por meio de uma mesada. Os petistas disseram: não, foi um esquema para o pagamento de despesas eleitorais com dinheiro tomado por empréstimo de dois bancos mineiros pelo PT e por empresas de publicidade de um cidadão chamado Marcos Valério, que rapassava os recursos ao PT. A Procuradoria-Geral da República e a maioria do STF, apoiadas numa verdadeira campanha de perseguição contra os chamados mensaleiros, movida praticamente por todos os maiores jornais e redes de televisão do País, no fundo consagrou a tese de Jefferson e, com base em indícios – fraquíssimos, como mostraremos – de que os empréstimos não existiam, disse que o dinheiro veio de recursos desviados do Banco do Brasil (BB) e da Câmara dos Deputados por um esquema cujo comando estava na própria Casa Civil da Presidência da República.
Esses desvios são, então, as vigas mestras da tese do mensalão. Provariam a inexistência dos empréstimos, os quais, existindo, rebaixariam o delito cometido da categoria de “o grande crime” de nossa história política para a da conhecida praga do caixa dois, que há décadas corrompe as campanhas eleitorais brasileiras. O defeito crucial do julgamento, a nosso ver, é que o procurador-geral da República não procurou, primeiro, seguindo as recomendações de Beccaria, provar os desvios de dinheiro público. E era fácil comprovar que eles não existiam, como Retrato do Brasil demonstra nesta edição especial. Mesmo agora, oito anos depois, nem as entidades supostamente roubadas, isto é, o Banco do Brasil e a Câmara dos Deputados, exigiram esse dinheiro de volta.
E por que a condenação de tipo medieval? Porque para muitos, à direita, o petismo é, e sempre foi, a encarnação do mal e para outros, à esquerda, desiludidos, o petismo, que seria a salvação do Brasil, passou a ser, sob o comando de José Dirceu, nosso Lúcifer, uma espécie de anjo degenerado. E porque, também, se criou um clima irracional que pretendeu atacar a corrupção do processo eleitoral brasileiro com métodos medievais, com uma caça às bruxas, as quais, encontrando-se presas e exemplarmente condenadas, nos redimiriam.
2.
O esquema
A DESCOBERTA DO VALERIODUTO
PELO QUAL PASSARAM 55,3 MILHÕES DE REAIS
No dia 13 de julho de 2005, um mês depois de o deputado Roberto Jefferson ter dado suas duas espetaculares entrevistas à Folha de S.Paulo denunciando a existência do mensalão, uma força-tarefa da Polícia Federal comandada pelo delegado Luiz Zampronha esteve em Belo Horizonte, nos arquivos do Rural, um banco mineiro de porte médio. Apoiada em um mandado da Justiça Federal, requisitou toda a documentação relativa às contas de Marcos Valério, um dos donos das agências de publicidade no estado pelas quais se teria processado uma movimentação ilícita de dinheiro. Zampronha saiu de lá com a documentação básica que iria orientar a gigantesca investigação que se estenderia por vários anos. Até hoje, final de março de 2013, o Rural, em sua defesa, distribui um comunicado no qual diz que já então, antes de o escândalo vir a público com a denúncia de Jefferson, “inclusive em um deliberado excesso de cautela e extrapolando as obrigações legais […], registrava em um sistema interno não só as movimentações bancárias, mas também todos os seus beneficiários”.
Deixemos de lado, no entanto, tanto as questões legais – o que era ou não obrigação do Rural fazer em função das normas do Banco Central e da legislação que busca coibir a movimentação clandestina de dinheiro – como a questão de saber se esse dinheiro era para o que se chama, na política, de caixa dois ou para algo diferente, o mensalão. No momento, vale dizer que, efetivamente, o banco mineiro tinha uma grande lista de políticos ou seus intermediários que haviam recebido recursos do chamado valerioduto por meio de um “esquema”, digamos assim, montado basicamente por Delúbio Soares, tesoureiro do PT, Marcos Valério e três de seus sócios em algumas empresas – Rogério Tolentino, Ramon Hollerbach e Cristiano Paz – e pelo próprio banco, especialmente, ao que tudo indica, por seu presidente, José Dumont, no começo de 2003. A história não foi bem contada até hoje, ofuscada pelo escândalo causado pela mídia em geral, por políticos, investigadores e mesmo magistrados viciados também em manchetes e holofotes. Os personagens têm papéis diversos do que supõe o senso comum. O clima escandaloso transformou Marcos Valério, uma pessoa com algumas virtudes e muitos defeitos, num monstro. Delúbio Soares, um militante petista histórico, foi expurgado do partido por seis anos – só foi reintegrado em 2011. Dumont, o presidente do banco, apontado por vários dos envolvidos como uma figura central na montagem do esquema, morreu em fevereiro de 2004. Antes, portanto, de dar seu testemuho sobre essa e outras versões da história. Na opinião dos repórteres desta história, que conheceram vários dos personagens, cada um deles tem um papel diferente e todos deveriam ter sido tratados pela Justiça na medida certa de suas participações em crimes que tivessem sido também devidamente comprovados, o que, infelizmente, não ocorreu.
Mas o certo é que, dos arquivos do Rural, depois confirmados por Delúbio e Valério e por dezenas de inquéritos da Polícia Federal, da Procuradoria-Geral da República, do Congresso Nacional e de dezenas de repórteres dos maiores veículos de informação do País, surgiram centenas de documentos do valerioduto, como os que apresentamos nestas páginas. No conjunto, eles mostram a distribuição de aproximadamente 55,3 milhões de reais entre políticos ou seus auxiliares de cinco partidos. O PT foi o principal beneficiário. Recebeu cerca de 28,5 milhões de reais, sendo 18 milhões para diversos de seus diretórios e 10,5 milhões para Duda Mendonça, o marqueteiro da campanha petista de 2002, que elegeu o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Para o PL, o partido de José Alencar, o vice-presidente, eleito junto com Lula, tinham ido 12,2 milhões. Para o PP, o partido do famoso ex-governador paulista Paulo Maluf, 7,8 milhões. Para deputados do PMDB, 2,1 milhões. E, finalmente, 4,9 milhões foram para o PTB, do próprio denunciante, Roberto Jefferson, então presidente do partido.
De onde vinha esse dinheiro? Os depoimentos de todos os acusados e toda a documentação levantada por meio das diversas investigações feitas mostram que o valerioduto foi alimentado por empréstimos tomados no Banco Rural e no BMG, outro banco mineiro médio. Os tomadores foram três empresas de Valério e seus sócios já citados: SMP&B, a Graffiti e a Rogério Tolentino Associados. A CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) dos Correios, a principal investigação do Congresso sobre a história, resume os empréstimos: foram sete contratos, assinados no prazo de um ano e meio, entre 25 de fevereiro de 2003 e 14 de julho de 2004. Como eram de curto prazo, geralmente três meses, as dívidas foram, como se diz, “roladas”: somando todas, foram 15 renovações. E, diz o relatório dos peritos que os examinaram para a CPMI, um dos contratos, tomado pela SMP&B no BMG, foi liquidado com outro, tomado pela Graffiti, também no BMG. Resumindo a conta, foram tomados por empréstimo 55,3 milhões de reais, em valores da época da tomada..
Esse dinheiro foi repassado ao PT da seguinte forma: a SMP&B abriu, numa agência do Rural em Belo Horizonte, uma conta em que os pagamentos foram centralizados. Delúbio dizia a Valério a quem repassar o dinheiro. O publicitário, por sua vez, chefiava a gerente financeira da SMP&B, Simone Vasconcelos, encarregada de realizar a operação, o que ela fazia pessoalmente ou com a ajuda de Geiza Dias, outra funcionária da empresa. O dinheiro era entregue geralmente em cheque ao portador, que o descontava na boca do caixa, numa agência do Rural, na maioria das vezes em Brasília. Quando o beneficiário do esquema não queria ir ao banco pessoalmente, mandava alguém buscar o dinheiro. Ou, então, Simone ou Geiza retirava o dinheiro do caixa do Rural e o levava pessoalmente ao destinatário, às vezes em um carro-forte.
O dinheiro distribuído ao próprio PT foi enviado, a mando de Delúbio, em blocos. Um deles foi para Duda Mendonça. Saiu em parcelas, como, de um modo geral, todos os outros. As parcelas foram entregues no Brasil nos caixas do Rural, como a todos os outros destinatários, mas se sabe que um dos recebedores, em nome de Duda, foi o policial Davi Rodrigues, que, tudo indica, era um intermediário cuja função era levar o dinheiro até um doleiro, a partir do qual a grana acabou em dólares numa conta de Duda Mendonça nas Bahamas. Os blocos destinados aos diretórios regionais do PT geralmente foram para intermediários, como no caso do Pará, onde apareceu, em primeiro lugar, Anita Leocádia, secretária do presidente do partido na região, Paulo Rocha, que assumiu ser o destinatário dos recursos, para, como disse, despesas locais, das quais prestou contas. No caso dos depósitos para os diretórios nacional, do Rio e do Rio Grande do Sul, por exemplo, não existe essa contabilidade precisa. Os intermediários, vários, como no caso do diretório nacional, não disseram a quem o dinheiro foi repassado. O dinheiro para os outros quatro partidos, PL, PP, PMDB e PTB, também foi repassado a intermediários, de um modo geral. Muitos dos destinatários finais do dinheiro, portanto, não foram identificados, ou seja, não foram denunciados pelos que pegaram o dinheiro diretamente do Rural ou via Simone e Geiza.
Para entender bem a história e seus mistérios, é preciso guardar desta etapa dois pontos: 1) o Rural fez questão de registrar os nomes de todos os tomadores finais ou os intermediários básicos: dirigentes regionais do PT ou seus prepostos e dirigentes ou intermediários dos partidos aos quais repassou dinheiro; 2) o dinheiro do denunciante do mensalão, Roberto Jefferson, é de um dos blocos, mas ele jura que esse dinheiro, ao contrário dos outros, é para despesas de campanha e não disse a quem distribuiu os 4 milhões de reais recebidos. Segundo o tesoureiro de seu partido, Edison Palmieri, o valor foi dividido em blocos de 100 mil e 150 mil para ser repassado à companheirada.
3.
Caixa dois ou mensalão
O ESPERTO JEFFERSON DIZ: O MEU
É CAIXA DOIS, O DELES É MENSALÃO
Na história contada por Roberto Jefferson nas duas entrevistas dadas à Folha de S.Paulo, a 6 e 13 de junho de 2005, na deflagração do escândalo do mensalão, ele diz ter recebido a informação do ex-presidente de sua legenda, o PTB, José Carlos Martinez, morto em outubro de 2003 num acidente aéreo. Pouco antes da morte, disse Jefferson à jornalista Renata Lo Prete na primeira entrevista, Martinez o teria procurado e dito, referindo-se ao tesoureiro do PT, Delúbio Soares: “Roberto, o Delúbio está fazendo um esquema de mesada, um ‘mensalão’, para os parlamentares da base. O PT, o PL, e quer que o PTB também receba. Trinta mil reais para cada deputado. O que me diz disso?” Jefferson, em resposta, afirma ter dito a Martinez: “Eu digo: sou contra. Isso é coisa de Câmara de Vereadores de quinta categoria. Vai nos escravizar e vai nos desmoralizar”. Em seguida, afirmou à Folha: “O Martinez decidiu não aceitar essa mesada, que, segundo ele, o doutor Delúbio já passava ao PP e ao PL”. Na mesma entrevista, o ex-deputado disse também que, em função de sua posição firme contra o mensalão, Delúbio, após a morte de Martinez, procurou o líder do partido, José Múcio (PTB–PE), para convencê-lo a aceitar a mesada que Jefferson barrara. Ele também afirma ter reunido sua bancada para condenar o recebimento de mesada e que líderes dos partidos que já a recebiam, como Valdemar Costa Neto, do PL, e Pedro Henry, do PP, haviam se unido para pressionar Múcio: “Que que é isso? Vocês não vão receber? Que conversa é essa? Vão dar uma de melhores do que a gente?”.
Nessa primeira entrevista à jornalista da Folha, Jefferson não contou que o PTB já recebera 4 milhões de reais do valerioduto. Muito menos que, desse dinheiro, que passou a controlar depois da morte de Martinez, tinha autorizado um motorista da confiança do partido a fazer dois saques, de 100 mil reais cada, nos dias 7 e 14 de janeiro de 2004, para repassar à moça que era amante do chefe partidário e ficara desamparada com seu falecimento. Jefferson foi, afinal, cassado pela Câmara dos Deputados a 14 de setembro de 2005, por 313 votos contra 156. No voto que encaminhou o pedido de cassação na Comissão de Ética da Câmara, o deputado Jairo Coelho (PFL–RJ) condenou Jefferson por várias razões: não tinha provado o suborno de parlamentares com o mensalão, ele próprio recebera, para o PTB, 4 milhões de reais do valerioduto e ainda mentira, em seu depoimento perante a comissão, ao afirmar que ocorrera uma reunião da bancada do PTB para discutir o assunto e que o líder do partido, José Múcio, havia discutido a questão da mesada com Delúbio Soares, coisas que Múcio e outros deputados do partido desmentiram.
Nas histórias que acompanharam o grande escândalo político em Brasília, muitas fazem referência a práticas de corrupção antiquíssimas. A Polícia Federal, na sua perseguição a Marcos Valério, foi atrás de histórias de festas de embalo que ele teria proporcionado em um hotel da capital federal para parlamentares, nas quais estariam presentes garotas selecionadas por uma conhecida cafetina local. Duas dessas festas, em 2003 (uma em setembro e outra em novembro), por exemplo, acabaram dando matéria no circunspecto diário paulista O Estado de S. Paulo, no dia 9 de agosto de 2005, sob o título “Ex-sócio confirma festas com garotas de programa em Brasília”. O artigo nomeia um empresário que teria dito à PF ter sido contratado por Valério para promover os dois eventos, nos três últimos andares de um dos hotéis da capital federal, e informa, vejam só, que “a PF desconfia que as festas teriam contado com a participação de parlamentares e altos dirigentes dos governos federal e estadual”. O Estadão diz ainda que “a PF apurou que nos dias das duas festas citadas por [….] houve saques de 3,5 milhões nas contas de Valério” e conclui afirmando que “rastreamento do Banco Central mostra um maior faturamento da empresa [do referido empresário, cujo nome omitimos], 28 milhões, nos dois primeiros anos do governo Lula”. Essa história acabou sendo reproduzida nas “considerações finais” com as quais o procurador-geral da República encaminhou ao STF seu pedido de condenação dos acusados em meados de 2012.
A tese de que o dinheiro de Jefferson era caixa dois e o dos outros era mensalão, como vimos, não mostrou que o ex-deputado era o puro e os outros, os corruptos. Do mesmo modo, mesmo se considerarmos que o dinheiro de Valério alimentou um caixa dois no PT – como parece, aos dois repórteres desta história, o mais correto –, não significa dizer que se tratou apenas de dinheiro para pagar despesas de campanha e pronto. Como disse Retrato do Brasil na sua edição de novembro passado “um arguto repórter da Folha de S.Paulo, num debate recente (…), disse que dinheiro de caixa dois é assim mesmo e que viu deputado acusado de ter recebido dinheiro do valerioduto vestido de modo mais sofisticado depois desses deploráveis acontecimentos [do mensalão]”. A importância de Jefferson na história é que ele foi o político sagaz que soube conduzi-la. Fora acuado por denúncias de corrupção em duas matérias de capa da revista Veja, a de maior influência no País. Em uma delas, com a história de um preposto seu nos Correios, cuja foto aparece na capa da revista recebendo uma propina de 3 mil reais. A reportagem narra o tráfico de influência praticado pelo PTB na estatal. A outra matéria o apresenta como “o homem-bomba”, prestes a explodir a coligação governista. Jefferson diz que procurou a cúpula política do governo petista para achar outra saída, mas, ao ser atacado em outra matéria de capa, dessa vez da revista Época, sobre a qual imaginava que o PT teria alguma influência, percebeu que tinha de tentar sair atirando. Na sua primeira entrevista à Folha, ele ainda poupa o então ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu. “Fui ao ministro José Dirceu, ainda no início de 2004, e contei: ‘Está havendo essa história de mensalão. Alguns deputados do PTB estão me cobrando. E eu não vou pegar. Não tem jeito’. O Zé deu um soco na mesa: ‘O Delúbio está errado. Isso não pode acontecer. Eu falei para não fazer’. Eu pensei: ‘Vai acabar’. Mas continuou.”
A essa altura, forças mais poderosas do que as lideradas por Jefferson preparavam-se para uma ofensiva contra o governo Lula, enfraquecido por diversas razões que examinaremos com mais detalhe no capítulo seguinte. Em seu primeiro editorial sobre o mensalão, dois dias depois da entrevista de Jefferson à Folha, O Estado de S. Paulo, com certeza o mais influente e consequente veículo de imprensa do bloco político conservador do País, sob o título “O grande culpado”, atacava o presidente Lula por sua incapacidade de enfrentar a crise, que, dizia, “na melhor das hipóteses se tornará crônica, e, na pior, se transformará em crise institucional”. No segundo editorial, do dia 11 de junho, intitulado “O novo nome da crise”, o famoso Estadão fazia uma correção, ainda no seu editorial principal: “Até a semana passada, o sinônimo da ‘crise’ era Luiz Inácio Lula da Silva, cujas omissões o tornaram ‘o grande culpado dos problemas de seu governo’, como se comentou neste espaço. Mas, se Lula, enfim, resolveu segurar com mão firme o leme de seu governo ameaçado de adernar em meio à mais inclemente tormenta que sobre ele se abateu nesses dois anos e meio de existência, a crise do Planalto parece a caminho de assumir um novo nome: José Dirceu de Oliveira e Silva”.
Possivelmente o Estadão percebeu que uma iniciativa para tentar o impeachment do presidente Lula não encontraria maior apoio. No editorial, argumentava que a mudança do nome da crise se justificava por declarações de Dirceu no exterior protestando contra a política econômica do próprio governo numa atitude mais ofensiva do que antes. Disse o Estadão: “Não faz muito, quando perguntado numa entrevista sobre as políticas fiscal e monetária [do governo], ele se limitou a responder que todos sabem o que ele pensa. Agora, em Lisboa, mudou totalmente de atitude. ‘Se deixarem’, disse, como quem adverte que não deixará, ‘fazem o superávit primário de 7%, juros de 20%.’ E arrematou, desafiador: ‘Isso é uma disputa política. Não falar isso é faltar com a verdade para a sociedade’”.
4.
Quem procura acha
A AUDITORIA QUE FOI BUSCAR
O QUE SE SABIA NÃO EXISTIR
Em 2002, antes de o PT ganhar as eleições para a Presidência da República, ficou famosa a profecia, do megainvestidor George Soros, de que o partido não podia ganhar as eleições e, se ganhasse, não levaria. De certo modo, foi o que aconteceu. Luiz Inácio Lula da Silva ganhou as eleições no segundo turno, mas só depois de, sob intensa pressão dos mercados, com o dólar chegando perto da cotação de um por quatro reais, seu partido assinar a Carta ao Povo Brasileiro, na qual promete cumprir todos os contratos assinados pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, e confirmar esse compromisso pouco após a eleição, até com certo exagero, ao elevar a meta do superávit primário, ou seja, a contenção de despesas para garantir sobras de orçamento para o pagamento dos compromissos externos do País. Do ponto de vista administrativo, duas medidas foram tomadas pelo novo governo para explicitar melhor esses compromissos com o mercado financeiro: a escolha de Henrique Meirelles, ex-dirigente global do BankBoston, para dirigir o Banco Central e de Cássio Casseb, ex-dirigente do Citibank no País, para dirigir o Banco do Brasil.
No BB iria surgir o grande instrumento para a oposição transformar sua investigação sobre o valerioduto num indício de “desvio de dinheiro público”. Esse instrumento foi a denúncia, surgida em 3 de agosto – menos de dois meses após o mensalão ter se transformado na principal manchete de todos os noticiários da grande mídia –, de que Luiz Eduardo Ferreira da Silva, um contínuo da Previ, o fundo de pensão do Banco do Brasil, tinha sacado, a mando de Henrique Pizzolato, diretor de marketing e comunicação do banco, nomeado no governo Lula, exatos 326.660,27 reais numa das pontas do valerioduto, uma agência do Banco Rural no centro do Rio de Janeiro. Pizzolato disse, logo depois, que se tratava de dinheiro para o diretório do PT no Rio, mas, a seguir, os jornais descobriram que ele tinha comprado um apartamento de 400 mil reais em Copacabana algum tempo depois desse saque. Imediatamente, surgiu a tese de que o dinheiro sacado do Rural tinha sido uma propina de Marcos Valério para Pizzolato renovar o contrato de publicidade entre o BB e a DNA, agência de publicidade de Valério e sócios.
Pizzolato deixou a diretoria do BB imediatamente. Não importa se no desenrolar da história, foi provado que a renovação do contrato com a DNA não foi assinada por ele – é de antes do governo Lula. Também não teria relevância caso uma devassa monumental da Receita Federal em sua história financeira acabasse comprovando que na compra do apartamento em Copacabana não existiu qualquer dinheiro estranho às poupanças dele e de sua mulher, Andrea, nem mesmo que a história do desvio fosse totalmente infundada. No próprio BB surgiu uma investigação que iria fornecer indícios de que os trabalhos da DNA para o BB, feitos por meio do Fundo de Incentivos Visanet (FIV), na gestão de Pizzolato, no valor total de 72,8 milhões de reais, poderiam não ter sido realizados e que, portanto, em parte desse montante, de algum modo aportado à conta da SMP&B no Rural que alimentou o valerioduto, estaria a grana que transformaria os empréstimos tomados por Valério e seus sócios junto aos dois bancos mineiros em operações fajutas, feitas, de fato, para disfarçar a verdadeira origem do dinheiro, o desvio de fundos públicos. Essa investigação, feita por 20 técnicos do BB ao longo de quatro meses, foi uma extensa auditoria sobre a forma de operação do FIV. Seus resultados só foram divulgados formalmente em novembro de 2005, mas parte deles foi vazada para a imprensa muitas vezes antes, para alimentar o escândalo.
O FIV foi uma criação, no Brasil, da Visanet, nome fantasia da Visa Internacional, a maior empresa global de emissão de cartões de crédito e débito, os de marca Visa. Em 1995 ela chegou ao Brasil e fez a Visanet, sob seu controle, em associação com mais de 20 bancos locais, sendo o principal deles o Bradesco e o segundo, o Banco do Brasil. A Visa Internacional é gigantesca. A Visanet, hoje Cielo, era uma dentre muitas dezenas de outras emissoras de cartões Visa montadas por ela em vários países. Os seus cartões movimentam, anualmente, alguns trilhões de dólares por ano. Em 2004, por exemplo, o movimento de dinheiro com os cartões Visa no Brasil foi estimado em 156 bilhões de reais. Desse dinheiro, como faz em todos os lugares do mundo, a Visa destina 0,1% para seus sócios fazerem propaganda dos cartões Visa. Ou seja, em 2004, no Brasil, a Visanet dedicou 156 milhões para serviços de promoção de cartões de bandeira Visa, do Bradesco, do Banco do Brasil e dos outros sócios. O propósito era aumentar ainda mais o faturamento da Visa Internacional no País e, é claro, os lucros da companhia, pois ela fica com a maior parte das comissões cobradas dos fornecedores de bens e serviços que aceitam os pagamentos por meio desses cartões.
A auditoria feita no BB nos quatro meses citados e depois completada nos anos seguintes a pedidos do relator do processo, ministro Joaquim Barbosa, dos dois procuradores-gerais da República que cuidaram do caso, Antonio Fernando de Souza e Roberto Gurgel, e, ainda, dos advogados dos réus, está em 108 apensos da Ação Penal 470 no Supremo Tribunal Federal. RB tem em seu site todos eles, que formam um conjunto de cerca de 20 mil páginas. A auditoria não foi buscar, em primeiro lugar, a materialidade do crime, as provas concretas de que tinha ocorrido um desvio de dinheiro do Banco do Brasil, de que um crime havia sido cometido. Ela partiu em busca de indícios de que crimes poderiam ser sido cometidos. No caso, um de seus critérios básicos foi tentar verificar se a execução dos serviços do FIV pela empresa DNA, a mando do BB, estava de acordo com as normas de operação do banco para a veiculação da publicidade que era paga diretamente pelo seu orçamento.
Os auditores, ou as pessoas que os comandaram, tinham, ou poderiam ter encontrado, todas as informações que mostrariam não ser esse o procedimento adotado pelo BB para autorizar esse tipo de gasto. Por contrato assinado entre o BB e a Visanet em 1995 – portanto, no governo Fernando Henrique Cardoso –, as autorizações para os gastos de publicidade via FIV eram emitidas por um funcionário especialmente designado pelo BB junto à Visanet – e no governo Lula essa pessoa não era Pizzolato. Além disso, por decisão do departamento jurídico do banco, tomada também no governo FHC, não existiria um contrato formal entre BB e Visanet para a operação desses recursos. Não haveria, também, um contrato formal entre a Visanet e a DNA para essas operações. Veja, na página anterior, trecho de documento do departamento jurídico do BB no qual se afirma ser legal a dispensa desses instrumentos. Citando o artigo 436 do Código Civil, o documento diz expressamente: “Tal espécie de contrato não reclama uma formalidade, ou seja, não precisa ser escrito para se aperfeiçoar, bastando mero consentimento das partes”.
E isso foi feito, como pode ver quem estudar cuidadosamente os fatos, não por trama sinistra executada no governo FHC e seguida cavilosamente também por Pizzolato no governo Lula. Um dos segredos da Visanet nos lugares em que opera é colocar a serviço da venda de seus cartões – e, portanto, do aumento de seu faturamento – bancos rivais entre si, cada um interessado em emitir mais cartões que o outro, disputando cada espaço do mercado. Por exemplo, se havia, como de fato houve nesse período, um congresso de magistrados em Salvador e o BB queria fazer uma promoção no local, isso não deveria estar escrito num plano a ser discutido dentro da Visanet, onde estava o Bradesco, por exemplo, com mais ações que o BB na empresa e igualmente ávido para vender cartões Visa aos juízes, pessoas de alto poder aquisitivo.
As relações entre Visanet, bancos e agências de publicidade tinham de ser mais frouxas, para que o negócio funcionasse melhor. Os negócios foram feitos assim e o truque funcionou, especialmente para o BB, que se tornou, nos anos da gestão Pizzolato, líder no faturamento de cartões de crédito entre os bancos associados à Visanet.
Os auditores foram procurar documentos onde esses documentos não estavam. Notas fiscais, faturas e recibos da agência DNA e de fornecedores que teriam feito para ela as ações de incentivo autorizadas pelo BB foram buscados no próprio BB, onde não estavam. Como quem procura acha, os auditores encontraram “fragilidades e falhas”: descobriram que, nos dois períodos até então – os anos 2001 e 2002, de operação do FIV com o BB na administração Fernando Henrique Cardoso, e 2003 e 2004, de operação do fundo na administração Luiz Inácio Lula da Silva, com Pizzolato na diretoria de marketing e comunicação do banco –, as ações com dinheiro do FIV alocado para o BB, com falta absoluta ou parcial de documentos nos arquivos do próprio BB, chegavam quase à metade dos recursos despendidos. Ao procurarem os mesmos documentos na Visanet, os auditores os encontraram. Evidentemente, a grande mídia – cujos colunistas mais raivosos chamam os petistas de petralhas – divulgou apenas que os auditores tinham achado, nos arquivos do BB, “fragilidades e falhas” que mostravam indícios de que os serviços da DNA para o BB poderiam não ter sido realizados.
5.
Mídia e Congresso
COMO FOI CRIADO “O MAIOR ESCÂNDALO
POLÍTICO DA HISTÓRIA DO PAÍS”
A transformação das “fragilidades e falhas” no processo de controle dos recursos do Fundo de Incentivos Visanet pelo Banco do Brasil num clamoroso “desvio de dinheiro público” não se deu por força de afirmações contidas nos frios relatórios da auditoria feita pelo banco nesse fundo. Essa metamorfose ocorreu após a denúncia do escândalo na Câmara dos Deputados, um local no qual o PT sofrera uma grande derrota no início de 2005, com a perda da presidência da Casa, cargo em que estava seu deputado João Paulo Cunha, um ex-metalúrgico, como o presidente Lula. Na sucessão, o PT se dividira. Foi apresentada inicialmente meia dúzia de candidatos, inclusive o próprio Cunha, para cuja reeleição se tentou, sem sucesso, aprovar uma emenda aos estatutos da Casa. Ao final, contrariando a decisão formal do partido, o PT concorreu com dois candidatos: um, oficial, Luiz Eduardo Greenhalgh, conhecido ativista de direitos humanos e deputado por São Paulo, e outro, Virgílio Guimarães, do PT de Minas. Por sinal, no que interessa à nossa história, ele é o homem que apresentou Delúbio Soares a Marcos Valério. Em meados de fevereiro, foi feito o pleito e, no primeiro turno, Greenhalgh venceu, por 207 votos, contra 117 de Guimarães e 124 de Severino Cavalcanti, do PP, partido da “base aliada”, como se sabe. No segundo, Cavalcanti ganhou disparado: 300 votos contra 195 de Greenhalgh.
Na Câmara, presidida por Cavalcanti desde então, surgiu, no começo de julho, logo depois da divulgação das listas de beneficiários do valerioduto, um novo “indício” de desvio de dinheiro público; no caso, contra Cunha e de modo parecido com o do “indício” levantado contra Pizzolato. Ele teria assinado um contrato de publicidade com a SMP&B, a agência já citada de Marcos Valério e seus sócios, por ter recebido deles uma propina de 50 mil reais. Esse dinheiro foi sacado na agência do Banco Rural em Brasília pela esposa do deputado, que assinou o recibo correspondente, com seu nome e número do CPF. Cunha argumentou que o dinheiro tinha sido enviado pelo PT, em 2004, a mando de Delúbio Soares, e se destinava a uma pesquisa eleitoral na região onde ficam sua base, Osasco, e outras importantes cidades da Região Metropolitana de São Paulo, como Barueri e Carapicuíba. Apresentou recibos do encarregado da contratação das pessoas que fizeram as pesquisas e pacotes de formulários preenchidos nesse levantamento. Isso não acalmou os ânimos oposicionistas acirrados com a história.
Cunha pediu, então, que o presidente da Câmara, deputado Severino Cavalcanti, encomendasse ao Tribunal de Contas da União (TCU) uma auditoria nas condições da licitação e na execução do contrato com a SMP&B. Foi como se tivesse pedido uma corda para ser enforcado. Severino pediu não só a auditoria que Cunha queria, mas também outra, a um comandado seu, Alexis Souza, que indicara para chefiar a Secretaria de Controle Interno (Secin) da Câmara. Souza acabaria não sendo empossado formalmente no cargo, que exige confirmação do nome pela mesa diretora da Casa, onde têm assento, além do presidente, mais seis deputados: dois vices e quatro secretários. Cavalcanti também acabaria sendo atropelado pelo escândalo: renunciou no dia 21 de setembro, sem que Souza fosse oficializado no cargo.
Seu relatório, no entanto, fez estragos. Ele foi entregue formalmente em duas partes, em setembro e outubro, depois da renúncia de Severino. Porém, sua divulgação foi bem anterior. Cópia de suas conclusões preliminares foram repassadas à equipe de inspeção da Terceira Secretaria de Controle Externo do TCU (3ª Secex) quando ela esteve na Câmara entre os dias 25 de julho e 3 de agosto de 2005. Tanto o relatório de Souza quanto o relatório da turma de inspeção do TCU, apresentado ao secretário da 3ª Secex em setembro, concluem que a agência SMP&B não tinha feito praticamente nada – 99,9% de seus trabalhos tinham sido terceirizados –, o que é a base para se concluir que Valério e seus sócios receberam o dinheiro para serviços de publicidade da Câmara, nada fizeram e o desviaram. Como se viu depois, as investigações da Câmara e do TCU prosseguiram por quatro anos e três anos respectivamente e, em decisões colegiadas, essas instituições absolveram completamente João Paulo Cunha de qualquer culpa. E o mais incrível é que o ministro Joaquim Barbosa, que comandou as votações do STF que sentenciaram o deputado Cunha a nove anos e quatro meses de prisão e mais 370 mil reais de multa, tenha apresentado as conclusões de Souza e da turma de inspeção da Secex – e ainda exageradas numa proporção de dez vezes – como resultado de duas decisões plenárias de órgãos da Câmara e do TCU.
Os dois relatórios preliminares, de Souza e o da primeira turma de inspeção da 3ª Secex, foram vazadas para a imprensa no começo de agosto de 2005. No dia 11 daquele mês, Duda Mendonça depôs na CPMI dos Correios e disse ter recebido do PT, no exterior, o equivalente a 10,5 milhões de reais. Vários deputados petistas choraram em plenário ao ouvi-lo. No dia 12, o presidente Lula fez um pronunciamento pela televisão no qual disse: “Eu me sinto traído por práticas inaceitáveis das quais nunca tive conhecimento”. No dia 17, numa nota, a Executiva do PT pediu desculpas ao povo brasileiro. No dia 1º de setembro, a CPI dos Bingos, chamada apropriadamente de “A CPI do Fim do Mundo”, porque saiu em busca de assuntos contra o PT que pudessem criar manchetes, levou para depor uma irmã do ex-prefeito de Santo André Celso Daniel, do PT, morto em 2002. A CPI quis investigar se a morte do prefeito não teria sido queima de arquivo, motivada por ele ter se rebelado contra um esquema de corrupção montado na prefeitura pelo PT.
Tudo indica que a oposição só não pediu o impeachment do presidente Lula no segundo semestre de 2005 porque não conseguiu ganhar a presidência da Câmara nas eleições disputadas em 28 de setembro. Aldo Rebelo (PCdoB–SP), pela base governista, e José Thomaz Nonô (PFL–AL), pela oposição, foram os adversários principais. No primeiro turno, empataram, com 182 votos cada. No segundo, Aldo ganhou apertado: 258 contra 243 votos. Mas José Dirceu teve seu mandato de deputado federal e os direitos políticos suspensos pelo plenário da Câmara por 293 votos contra 192, na madrugada de 1º de dezembro do ano do escândalo. A base para sua cassação: diversos indícios de que ele seria o chefe de três quadrilhas articuladas para o desvio de dinheiro público usado para comprar apoio político e aprovar as propostas iniciais do governo Lula.
O papel da mídia nessa denúncia e em seus desdobramentos não pode ser minimizado. Não se pode esquecer que a gravação da conversa de Maurício Marinho, o funcionário dos Correios flagrado por Veja no recebimento de uma propina de 3 mil reais de um empresário, foi articulada com Policarpo Junior, chefe da sucursal da revista em Brasília. O operador da gravação é Jairo Martins, preso com o empresário Carlinhos Cachoeira no início do ano passado. Ambos, junto com Policarpo, também estão envolvidos, ainda, na gravação das visitas a José Dirceu no apartamento em que ele atendia correligionários no Hotel Naoum, em Brasília.
Não se pode esquecer também que o outro grande evento midiático do período, o escândalo Daniel Dantas, liga-se com o do mensalão no momento em que alguns deputados conseguem enfiar no relatório final da CPMI dos Correios o pedido de indiciamento do financista. A Telemig, a Amazônia Celular e a Brasil Telecom, empresas então controladas por Dantas, e não o Banco do Brasil e a Câmara, seriam os responsáveis pelos recursos do valerioduto, visto que a DNA tinha contratos de publicidade com elas e também recebera muitos milhões dessas empresas nos anos de 2003 e 2004. O indiciamento de Dantas no mensalão, afinal, não foi pedido pelo procurador-geral da República, como se verá no capítulo seguinte, mas a divisão do mensalão para que os 40 indiciados pelo procurador fossem ouvidos em seus locais de residência acabou permitindo que a Procuradoria da República em São Paulo, onde mora José Dirceu, acabasse comandando um inquérito da PF voltado para investigar as relações de Dantas com o mensalão. “Acredita-se que o HD do banco” – o disco rígido do Opportunity, banco associado ao financista – “possa conter dados que comprovem a relação entre a Telemig, a Amazônia Celular e Marcos Valério”, disse a procuradora Ana Roman, que autorizou a abertura do inquérito, chefiado pelo delegado Ézio Silva do início de 2006 até o início de 2007 e depois pelo delegado Protógenes Queiroz. Quando o STF aprovou seu indiciamento, em 2007, como chefe da quadrilha do mensalão, Dirceu exibiu um exemplar da Folha de S.Paulo, que publicara declarações do ministro Ricardo Lewandowski, para quem a corte votou “com a faca no pescoço”. O ex-ministro atacou a grande mídia, que já teria pré-julgado o mensalão, e ele era o grande alvo. Os jornais tinham publicado trechos de relatórios das investigações de Queiroz nas quais arapongas procuravam identificar, nas vozes gravadas, menções ao nome de Dirceu. Numa dessas gravações, a mais grotesca, um “ele” perdido no meio de uma conversa de dois assessores do financista tinha sido interpretado por um dos arapongas como “José Dirceu”, e “conta curral” seria o código para um pagamento que ele teria recebido num paraíso fiscal (Ver O escândalo Daniel Dantas, duas investigações, editora Manifesto, páginas 80 e 81).
6.
Quem chefia a quadrilha
O PROCURADOR SOUZA COLOCOU
DOIS NOMES… E NÃO DEU CERTO
A Justiça interveio no mensalão desde o início de julho de 2005, quando um juiz federal em Minas Gerais autorizou a Polícia Federal a realizar busca e apreensão de documentos no prédio do arquivo do Banco Rural em Belo Horizonte. Ao perceber que o caso envolvia pessoas com foro privilegiado, isto é, que só podem ser investigadas com autorização do Supremo Tribunal Federal, como José Dirceu – que renunciara ao cargo de ministro em meados de junho, mas reassumira seu mandato de deputado federal –, Roberto Jefferson e João Paulo Cunha, também deputados, o juiz comunicou o fato à corte máxima, que, por sorteio, no dia 1º de julho, designou o ministro Joaquim Barbosa para acompanhar o caso.
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A etapa inicial do processo judicial é o inquérito, cujas investigações são feitas pela polícia e, em casos de alcance nacional, pela Polícia Federal. Na Justiça brasileira, quem comanda o processo investigatório é um promotor e, caso estejam envolvidas altas autoridades, esse promotor é o procurador-geral da República – no caso, Antonio Fernando de Souza. Depois do inquérito policial, o promotor verifica se há provas e indícios suficientes para mover uma ação penal destinada a levar os acusados a julgamento. Na nossa história, o inquérito da Procuradoria-Geral da República é o de número 2.245, de 2005, que desembocou na Ação Penal 470 do STF. O processo político, com as centenas de “inquéritos” promovidos pela mídia e as três comissões parlamentares de inquérito feitas pelo Congresso Nacional, teve uma espécie de conclusão preliminar a 30 de março de 2006, quando o deputado Osmar Serraglio (PMDB–PR) apresentou pela primeira vez o relatório final da CPMI dos Correios, no qual pede o indiciamento de 122 pessoas. Os nomes dessa lista inicial foram reduzidos a um terço, 40 pessoas, pelo procurador Souza, que naquele mesmo dia apresentou a denúncia do mensalão ao STF.
Destaque-se, para a nossa história, que o procurador eliminou da lista quatro nomes do Banco do Brasil. Ficou apenas o do petista Henrique Pizzolato. Saíram o presidente do banco, Cássio Casseb, e mais três funcionários, que vinham da administração anterior, do governo de Fernando Henrique Cardoso, a despeito de terem assinado, com Pizzolato, os documentos considerados incriminadores, que encaminharam os pedidos de liberação dos 73,8 milhões de reais em recursos do Fundo de Incentivos Visanet, tidos como desviados dos cofres públicos. Destaque-se, também, que Souza não indiciou vários deputados apontados na lista de Serraglio, mas ainda não julgados pela Câmara. Denunciou, porém, João Paulo Cunha, que até então também ainda não havia sido julgado pelos deputados. Quando o foi, pouco depois, o plenário o absolveu por 256 a 209 votos. O leitor deve levar em conta, também, que houve um grande esforço da Visanet para influir na seleção dos indiciados e para não entregar certos documentos seus à Polícia Federal. A empresa apresentou várias ações no Supremo para contestar uma decisão do então presidente da corte, Nelson Jobim, que determinava que a Visanet permitisse o acesso de peritos do Instituto Nacional de Criminalística, da PF, “a todos os documentos da empresa no período de 2001 a janeiro de 2006”. Como se verá no capítulo que trata da investigação feita por RB, mais adiante nesta história, um dos documentos essenciais da Visanet para o caso é um relatório dos advogados da empresa preparado para ser entregue por ela à Receita Federal. Esse relatório declara, em síntese, haver provas documentais de que não houve desvio de dinheiro do FIV destinado ao Banco do Brasil. Ele estava entre os documentos apreendidos inicialmente pela PF, mas foi devolvido à companhia graças à ação de seus advogados, os quais argumentaram ao STF, com êxito, que o referido relatório é protegido legalmente pelo direito de sigilo.
O relatório inicial da CPMI dos Correios, também apresentado no dia 30 de março, tinha 1.828 páginas e suas 122 sugestões de indiciamento seriam, uma semana depois, no plenário da Câmara, também desidratadas: ficaram apenas 24 indiciamentos e uma lista apartada de 18 deputados que poderiam ter cometido “crimes eleitorais ou de sonegação fiscal”, não acusados sob o argumento de que a investigação não teria tido tempo para análise de suas defesas mais recentes. O documento de Souza, embora claramente baseado nas investigações do Congresso, é relativamente sucinto. Depois de apresentar os indiciados, basicamente os mesmos que seriam julgados em 2012 pelo STF, e de uma introdução, se divide em sete blocos. Sua tese central procura se contrapor à de todos os réus, que tinham se defendido, desde o início do escândalo, com o argumento de que não tinha havido “o” crime histórico e excepcional batizado de mensalão, mas, sim, o tradicional crime de caixa dois. O pilar de sustentação da tese de que, sim, o mensalão existira, apresentada inicialmente por Souza, endossada com mais ênfase por seu sucessor, Roberto Gurgel, e com veemência e agressividade pelo ministro Barbosa na fase do julgamento – eram os supostos desvios de recursos públicos. Os “desvios”, “desvios de recursos públicos”, “desvios de dinheiro público” são citados mais de 30 vezes. E os exemplos mais detalhados desses desvios são atribuídos aos dois petistas já citados: João Paulo Cunha, político com sete mandatos, de vereador, deputado estadual e deputado federal; e Henrique Pizzolato, um homem de igreja, propagandista do PT em campanhas pelo Paraná e figura principal do Banco do Brasil na campanha nacional contra a fome idealizada por Herbert de Souza, o conhecido Betinho.
As acusações de Souza estão submersas num texto muito mal escrito e mal concatenado. Ele começa pela tentativa de caracterizar a “quadrilha” comandada por José Dirceu, a “sofisticada organização criminosa” que teria sido construída após a vitória do PT, em 2002, “para garantir a continuidade do projeto político” do partido “mediante a compra de suporte político” e que “se estruturou profissionalmente para a prática de crimes como peculato, lavagem de dinheiro, corrupção ativa, gestão fraudulenta, além das mais diversas formas de fraude”. Diz que Dirceu era todo-poderoso: “A atuação voluntária e consciente do ex-ministro José Dirceu no esquema garantiu às instituições financeiras, empresas privadas e terceiros envolvidos que nada lhes aconteceria, como de fato não aconteceu até a eclosão do escândalo, e também que seriam beneficiados pelo governo federal em assuntos de seu interesse econômico, como de fato ocorreu”.
A seguir, busca destruir as provas apresentadas pelos acusados de que o dinheiro distribuído pelo PT vinha de empréstimos, tomados pelo partido diretamente ou por empresas de Marcos Valério. “Conforme anteriormente assinalado, os elementos de convicção obtidos comprovam que esses empréstimos não seriam sequer efetivamente quitados. Tanto o grupo ligado a Marcos Valério quanto as instituições financeiras apenas ingressaram no esquema, pois tiveram a prévia concordância do ministro-chefe da Casa Civil e a garantia da inexistência de controle sobre suas atividades ilícitas e de benefícios econômicos diretos e indiretos.”
É um texto confuso, que envereda por desvios. Por exemplo, chega a sugerir que o BMG, um dos bancos que emprestaram dinheiro ao PT e às empresas de Valério e sócios, era o centro de tudo: “Todos os fatos que se desenrolaram desde então demonstram que as ações desenvolvidas pelo núcleo político-partidário foram pautadas exclusivamente para beneficiar o banco BMG, que, não por acaso, foi a primeira instituição financeira não pagadora de benefícios previdenciários habilitada à concessão dos créditos consignados, o que lhe rendeu vultosa lucratividade, decorrente, principalmente, dos mecanismos utilizados em seu benefício, que lhe permitiram sair na frente de todo o mercado de bancos pequenos, negociar esses empréstimos com os aposentados inclusive por telefone e, posteriormente, ceder essa carteira, em uma operação extremamente suspeita, à Caixa Econômica Federal”. O BMG acabou sendo excluído do julgamento numa fase posterior.
Para enfatizar a existência de supostas provas das relações de José Dirceu com Valério, o relatório chega a ser bisonho. Diz que Valério “afirma que esteve na Casa Civil aproximadamente em quatro ocasiões” e, a certa altura, afirma que o publicitário era a figura principal da quadrilha o que está de acordo com o incrível veredito final do caso que condenou Valério à maior pena de todos os chamados mensaleiros – 40 anos, dois meses e dez dias de prisão, mais 2,72 milhões de reais de multa –, mas é contraditório com a tese de que Dirceu era o chefe da quadrilha (condenado a dez anos e dez meses de prisão mais 676 mil reais de multa). Aliás, ainda em relação à questão da chefia da quadrilha, a denúncia de Souza comete outra extravagância: denuncia Luiz Gushiken, ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República e chefe de Henrique Pizzolato, por ser o homem que controlava a propaganda do governo Lula. A questão que o indiciamento de Gushiken levantava era: se o dinheiro básico desviado dos cofres públicos eram os 73,8 milhões de reais supostamente extraviados por Pizzolato, o chefe da quadrilha deveria ser Gushiken, e não José Dirceu. Talvez por essa incongruência Gushiken também foi posto fora da acusação numa etapa posterior desta nossa incrível história.
7.
A prova ideológica
O PERITO NÃO PÔDE VER, MAS
GURGEL VIU: O DINHEIRO FALAVA
A denúncia de Souza foi aceita pelo Supremo em agosto de 2007. O inquérito 2.245 foi transformado, então, na Ação Penal 470, e a investigação a cargo da Procuradoria-Geral da República prosseguiu nessa nova fase até o começo de julho de 2011, quando um novo procurador, Roberto Gurgel, no início de seu segundo mandato, apresentou, então, as alegações finais da acusação para o julgamento. O documento de Gurgel, muito mais extenso que o de Souza e muito mais bem escrito, mantém a mesma grandiloquência: “Trata-se da mais grave agressão aos valores democráticos que se possa conceber”, diz. A grande quadrilha, com três núcleos – político, operacional e financeiro – é a mesma e seu poderoso chefão é, igualmente, José Dirceu. “Ao assumir o cargo de ministro-chefe da Casa Civil em janeiro de 2003, José Dirceu passou a ter como missão a formação da base aliada do governo federal dentro do Congresso Nacional. Mais do que uma demanda momentânea, o objetivo era fortalecer um projeto de poder do Partido dos Trabalhadores de longo prazo. Partindo de uma visão pragmática, que sempre marcou a sua biografia, José Dirceu resolveu subornar parlamentares federais, tendo como alvos preferenciais dirigentes partidários de agremiações políticas.”
O desvio de recursos públicos é mantido como o pilar da acusação. Gurgel reafirma que esse desvio está provado e que é falsa a tese de que o dinheiro distribuído pelo esquema do valerioduto veio de empréstimos legítimos tomados junto aos bancos mineiros Rural e BMG. “A transferência de recursos pelos bancos Rural e BMG para alimentar o esquema ilícito jamais foi admitida pelos acusados. (…) Essa versão, entretanto, não pode ser aceita”, diz Gurgel, que, então, apresenta uma novidade: a SMP&B, que concentrava os repasses do valerioduto, tinha, já na sua contabilidade referente ao ano de 2003, contas específicas para registrar as operações do esquema: “388003-6 Partido dos Trabalhadores – PT”, “388090-2 provisão encargos emprest PT”; e “194001-9 adiantamentos concedidos”. O procurador também mostra que a empresa fez o registro do empréstimo ao corrigir sua contabilidade após a denúncia do mensalão, para regularizar sua posição junto à Receita Federal. Em 2003, a conta da SMP&B “1010-5 caixa – cheques emitidos”, uma subconta da conta-caixa, era utilizada para registrar operações que passavam por essas contas e nas quais a empresa era emitente e beneficiária de cheques de suas próprias contas bancárias, operações por meio das quais saía o dinheiro do valerioduto. Gurgel, é claro, não usou essa novidade para concluir que os empréstimos ao PT existiam e que eram contabilizados, de algum modo, pela SMP&B. Não aceitou, inclusive, que a correção da declaração do Imposto de Renda a posteriori, amplamente aceita pela Receita Federal em relação às demais empresas, fosse válida neste caso.
Em sua acusação, Gurgel também torce os depoimentos de líderes de partidos acusados de receber suborno, Valdemar Costa Neto, do PL, Pedro Henry, do PP, e Roberto Jefferson, do PTB, que narram como foram negociados os apoios em dinheiro do PT. Eles negam o suborno e insistem em dizer que o que houve foram acordos políticos permitidos pela lei eleitoral. Gurgel tenta usar esses depoimentos para provar que José Dirceu era o chefe das negociações da ajuda financeira. Chega a reconhecer que “não discute a licitude da ação do chefe do gabinete civil da Presidência da República de articular junto ao Congresso Nacional a base parlamentar de apoio ao governo a que pertence”. Diz: “Evidentemente a articulação política insere-se nas atribuições do mencionado cargo”. Mas argumenta que a acusação decorre do fato de essa base de apoio ter sido formada “mediante o pagamento de vantagens indevidas a seus integrantes”. O termo “vantagens indevidas”, genérico, é usado por ele, aqui, da mesma forma que, sob o comando do ministro relator Joaquim Barbosa, viria a ser utilizado pela maioria dos outros ministros do Supremo no julgamento: como uma licença para não ter de provar a prática, pelos parlamentares que receberam dinheiro do PT, de “atos de ofício” que caracterizassem os crimes.
Gurgel também usa, nas suas alegações, o truque no qual o ministro Barbosa se especializaria no julgamento: depoimentos colhidos na fase do inquérito policial, durante a qual os acusados não tiveram direito ao contraditório. Ele cita Jader Kalid Antônio, um doleiro mineiro que executou repasses para a conta de Duda Mendonça nas Bahamas. Kalid depôs na PF e disse ter sido orientado, em 2003, por um dos sócios de Valério, Ramon Hollerbach – que acabou recebendo a segunda maior pena da história do mensalão – 29 anos, sete meses 20 dias mais multa de 2,8 milhões de reais –, a enviar para a conta de Duda nas Bahamas o dinheiro devido pelo PT . O doleiro diz ainda ter sido Hollerbach a pessoa que lhe passou o número da conta do publicitário no exterior. Valério nega que tenha mandado pagar Duda no exterior. No dia em que Duda deu uma declaração desse tipo, em seu depoimento na CPMI dos Correios, Valério, que estava em Brasília, foi ao Congresso e deu declarações que desmentiam o publicitário baiano. Hollerbach jura que nunca encontrou Duda e que jamais soube o número de qualquer conta sua.
Por último, vale destacar na acusação de Gurgel o que ele diz ser “a prova definitiva” da ação do núcleo publicitário formado por Rogério Tolentino, Marcos Valério, Cristiano Paz e Ramon Hollerbach no “desvio de recursos do Banco do Brasil, pelo esquema do Fundo de Incentivos Visanet”, estipulado por ele em “R$ 73.851.000,00 (setenta e três milhões, oitocentos e cinquenta e um mil reais)”. Gurgel diz que um laudo mostra que, no dia 22 de abril de 2004, a DNA sacou 10 milhões de reais da conta 602000-3, no BB, na qual recebia adiantamentos por serviços prestados ao FIV, e transferiu essa quantia para o BMG, para a compra de um CDB (Certificado de Depósito Bancário, um empréstimo do aplicador pelo qual o banco paga juros) que serviu de lastro para um empréstimo, dois dias depois, do banco a uma empresa de Tolentino, Rogério Lanza Tolentino e Associados. Este seria não só um empréstimo fictício, como também a prova do desvio. De fato, o dinheiro viria do BB. Como se sabe, movimentar dinheiro entre contas de bancos diferentes, por sócios, não prova nada. O dinheiro não fala, não revela sua origem ou destino. Além do mais, como se verá dois capítulos adiante, não houve o desvio do BB.
O exagero de Gurgel pode ser visto por meio das palavras dos próprios peritos, na conclusão do Laudo 1866/2009-INC, que afirma: “Os peritos entendem que o contrato está acobertado por garantias adequadas, vez que atendem às características de suficiência e liquidez exigidas pelas normas. Destaca-se que essa conclusão diz respeito ao aspecto formal do negócio, não tendo sido avaliado o seu aspecto ideológico, como a motivação da DNA Propaganda Ltda. em fornecer a garantia ou mesmo a origem dos recursos que a constituíram”. Em resumo, no entender dos repórteres, a acusação de Gurgel foi ideológica. Ainda sobre os empréstimos, o delegado Luiz Flávio Zampronha, que fez a apreensão inicial de documentos do mensalão, em 2005, foi chamado pelo então procurador Souza para aprofundar a investigação sobre a origem de recursos do mensalão. Seu relatório, entregue a Gurgel antes da elaboração das considerações finais, diverge muito do atual procurador. No essencial, para mais: o mensalão teria sido usado ao longo de anos. Mas ele diverge em pontos que destroem a tese do mensalão: diz que os empréstimos são verdadeiros e seriam quitados com dinheiro a ser arrecadado pelo esquema, como teria acontecido no caso do mensalão mineiro. Zampronha diz que o homem que construiu a ligação do Rural com o esquema era José Augusto Dumont e que não ficou suficientemente provada a ligação dos dirigentes do Rural condenados agora – Kátia Rabello (16 anos e oito meses, multa de 1,5 milhão de reais), José Roberto Salgado (16 anos e oito meses, multa de 1 milhão de reais) e Vinicius Samarane (oito anos, nove meses e dez dias, multa de 598 mil reais) – com as operações. Zampronha deu várias entrevistas. No dia 12 de setembro de 2012, ao votar pela absolvição de Geiza Dias, o ministro Lewandowski citou as declarações de Zampronha na imprensa em defesa dela. Joaquim Barbosa disse que as declarações de Lewandowski eram “bizarras”: “Isto é um absurdo. Em qualquer país decentemente organizado, esse delegado já estaria, no mínimo, suspenso”. O relatório de Zampronha não foi aceito por Gurgel. O procurador não é um anjo, nas alturas, acima do bem e do mal. Como escreveu Retrato do Brasil em sua edição 62, que fez a cobertura de sua denúncia do mensalão no plenário do STF, em agosto do ano passado: “Gurgel é o mesmo que não viu a quadrilha da qual participavam Cachoeira e o senador Torres, mesmo tendo os policiais que investigaram o empresário lhe apresentado, como resultado da Operação Las Vegas, realizada em 2009, entre centenas de conversas grampeadas entre os dois, pelo menos 22 consideradas muito comprometedoras”.
8.
Barbosa não foi Gramsci
ELE PREFERIU ESQUARTEJAR A HISTÓRIA
E GANHAR O PÚBLICO COM A “HISTORINHA”
Com certeza, a pessoa que transformou as narrativas do mensalão numa peça com aparência de justiça para ser vendida à opinião pública foi o ministro Joaquim Barbosa, que cuida do mensalão desde que o caso chegou ao STF, em 2005, ainda como inquérito. Até então Barbosa era relativamente estigmatizado. Fora escolhido para ser ministro do STF pelo presidente Lula, logo no começo de seu primeiro mandato, por ser negro, numa espécie de exercício da política de cotas raciais. Isso, de certo modo, foi mal recebido por expoentes da mídia mais conservadora que são contra esse critério para preenchimento de parte das vagas públicas em várias instâncias, no caso, o STF. Mas o seu encaminhamento, na corte, em meados de agosto de 2007, da denúncia do procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, contra os 40 integrantes do mensalão mudou radicalmente essa imagem e lhe valeu elogios estridentes.
“O Brasil jamais teve um deplorável escândalo como o mensalão. Como compensação, também jamais teve um ministro como Joaquim Barbosa”, disse Veja em sua edição do início de setembro de 2007, num artigo de capa no qual enumerava as qualidades de Barbosa, como menino pobre que estudou muito e venceu na vida e sua sofisticação, desde falar várias línguas, vestir-se em lojas chiques pelo mundo e conhecer com detalhes a vida em Paris, Nova York, Los Angeles e San Francisco.
Barbosa apresentou um voto de 430 páginas, lidas ao longo de 36 horas em cinco dias. Nele defendeu a justeza de aceitar a denúncia de que uma quadrilha liderada pelo ex-ministro José Dirceu movimentara dezenas de milhões de reais para corromper parlamentares em troca de apoio político. Veja destacava, essencialmente, a sagacidade de Barbosa em transformar a denúncia do procurador-geral numa peça para o convencimento do público. Dizia a revista: “Sua obsessão era a forma do voto, a estrutura, a ordem dos capítulos […] Joaquim Barbosa fez um voto inteligente. Subverteu a ordem da denúncia preparada pelo procurador-geral da República”. Souza, como já vimos, apresentou uma denúncia dividida em sete capítulos. Começava pelo que chamou de “quadrilha”. Ali estava o mais difícil de provar e o mais importante da acusação. Nessa seção Souza procurava distinguir o crime que denunciava do conhecido crime de caixa dois. Falava da “organização criminosa” comandada por José Dirceu para praticar “diversos tipos” de crime. Dizia que ela era “sofisticada”, formada por três quadrilhas, com divisão de tarefas. A acusação de que o deputado João Paulo Cunha, como presidente da Câmara dos Deputados, teria recebido propina de 50 mil reais e a de que Henrique Pizzolato, como diretor de marketing e comunicação do Banco do Brasil, teria recebido outra, de 326 mil reais, estava bem à frente, no quinto capítulo. No terceiro, Souza apresentava os “desvios de dinheiro público”, como o dos 73,8 milhões de reais que teriam sido tirados do Banco do Brasil, a partir das operações do Fundo de Incentivos Visanet, para as empresas de Marcos Valério.
Barbosa mudou a ordem da apresentação dos supostos crimes: procurou contar uma “historinha”, fácil de ser aceita pelo público, como disse na ocasião a O Estado de S. Paulo. Começou, então, pelo capítulo cinco, pela historinha de que Cunha e Pizzolato teriam sido simplesmente subornados. Depois foi para o capítulo três, no qual Souza procurava mostrar que o dinheiro do esquema petista viria de desvio de dinheiro público e, de fato, Cunha e Pizzolato teriam sido subornados para permitir o roubo do dinheiro do povo. Deixou por último o mais difícil, o capítulo no qual Dirceu é acusado de formar a sofisticada quadrilha tripartite. Com essa forma, o escândalo ficou mais compreensível, “o capítulo anterior jogava luz sobre o capítulo subsequente”, disse, na época, Barbosa ao Estadão.
Nos meses em que construiu sua versão do esquema, aparentemente Barbosa adquiriu problemas de coluna que até hoje o atrapalham. O sucesso de sua “historinha”, saudado pela unanimidade dos grandes veículos de formação da opinião conservadora do País, o tornou um herói para certo tipo de público e o fez mais agressivo, ousado. Nas sessões do STF, teve muitos atritos com outros ministros. Em 2008, por exemplo, atacou Eros Grau por ele ter concedido um habeas corpus para a soltura de Humberto Braz, sócio do financista Daniel Dantas que fora preso sob acusação de tentar subornar Protógenes Queiroz, o delegado da PF que chefiava a Operação Satiagraha, deflagrada contra Dantas. “Como é que você solta um cidadão que apareceu no Jornal Nacional oferecendo suborno?”, disse Barbosa a Grau. O vídeo da cena citada do noticioso da TV Globo era falso. O delegado seria depois processado pela própria PF e está condenado em primeira instância por ter fraudado essa “prova”. “[Sua] decisão foi contra o povo brasileiro”, disse Barbosa a Grau. O debate entre os dois baixou de nível: Barbosa ameaçou bater em Grau, a quem chamou de “velho caquético”; Grau lembrou um Boletim de Ocorrência de uma briga doméstica de Barbosa com uma ex-mulher e retrucou: “Para quem batia na mulher não é nada estranho que batesse num velho também” (sabe-se que a mulher que fez a denúncia da agressão posteriormente a retirou). Em 2009, Barbosa teve outra altercação violenta, dessa vez com o ministro Gilmar Mendes, de quem parecia amigo. Em sessão do STF, Mendes disse que Barbosa não tinha condições de dar lição de moral a ninguém. Barbosa retrucou dizendo que Mendes não tinha condições de sair às ruas, que ele estava destruindo a imagem da Justiça do País.
Os problemas de coluna e de humor de Barbosa não o impediram de chegar ao julgamento da AP 470, no início de agosto do ano passado, com toda a força. E de dar um salto na forma de contar sua “historinha” ao propor a votação fatiada do caso. Como vimos, Barbosa reorganizou a denúncia do procurador-geral, mas com um voto unitário. No julgamento, quando, como relator, foi o primeiro a votar, após os pronunciamentos da acusação, pelo procurador-geral Gurgel, e das defesas, pelos advogados dos réus, ele acabou impondo – com a ajuda do presidente da corte, Ayres Britto – a votação fatiada, sob protestos dos ministros Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio Mello e de praticamente todos os advogados dos réus.
O que Barbosa fez ao começar o julgamento pelas historinhas de corrupção é o oposto do que se recomenda num debate intelectual sério, transmitido pela televisão e, em certa medida, portanto, realizado diante do povo. Como disse o pensador italiano Antonio Gramsci, nesse tipo de discussão, na luta de ideias, ao contrário do que se faz na guerra, quando se procura destruir o inimigo atacando-o por seus pontos mais fracos, deve-se começar pelo ponto forte, o essencial da argumentação adversária. O propósito na luta de ideias não é destruir o adversário, como se faz com o inimigo, na guerra, mas derrotar suas ideias errôneas e, dessa forma, contribuir para elevar o nível de consciência e informação do povo.
Mas Barbosa não foi nenhum Gramsci nesse debate. Fez o contrário: procurou contar uma historinha que o publico aceitasse facilmente, a de que os políticos e os funcionários públicos são corruptos e desviam dinheiro público, sem ter feito uma análise mais objetiva dos fatos. João Paulo Cunha e Henrique Pizzolato não tinham, em suas longas e elogiadas carreiras no serviço público, nem cometido nem sido acusados de qualquer crime, mas foi-lhes negada a presunção de inocência porque Barbosa dispensou Gurgel de ter o ônus da prova. Pior: Barbosa fugiu do que seria sua obrigação básica de juiz do caso, a de confrontar a tese da acusação, a do mensalão, com a do caixa dois, dos réus.
Uma era antagônica à outra. Os acusados diziam que tinham tomado empréstimos dos bancos para pagar despesas de campanha. Os acusadores diziam que esses empréstimos não existiam, eram simulados; o dinheiro teria sido desviado dos cofres públicos e colocado nos bancos para disfarçar sua origem. Barbosa deveria ter confrontado essas duas teses. E ter feito isso respeitando os princípios básicos do direito penal: a necessidade de provar a materialidade do crime, de partir da presunção de inocência dos réus, do princípio in dubio pro reo – em caso de dúvida, deveria absolvê-los.
Note-se bem: ninguém poderia dizer que os réus são inocentes se a acusação fosse a de que eles tinham ajudado a conspurcar o processo eleitoral brasileiro, totalmente corrompido pelo dinheiro. Muitos dos acusados tinham sido participantes confessos, em maior ou menor grau, de um crime eleitoral: o uso de dinheiro clandestino para financiamento de candidatos e partidos. Mas a acusação não era essa. As evidências do caixa dois foram negadas, porque se queria construir a tese do “maior crime político da história da República”.
Em certa medida, Barbosa precisou das historinhas para fugir de suas obrigações, pois a prova básica do mensalão, o desvio de dinheiro público, era simplesmente uma falsidade, como a seguir se verá.
9.
Não viu quem não quis
OS 73,8 MILHÕES DO BB FORAM
GASTOS DIANTE DE TODO MUNDO
O crime básico do mensalão, o desvio de dinheiro público, seria clamoroso, de uma evidência espantosa, concluiu o STF. No dia 29 de agosto, numa das sessões plenárias do julgamento da AP 470, na qual se concluiu a condenação dos acusados pelo suposto desvio de 73,8 milhões de reais do Banco do Brasil, o ministro Gilmar Mendes fez uma espécie de pronunciamento à nação no qual se disse perplexo ao ver a que ponto tínhamos chegado “na escala das degradações”. Disse que dinheiro tinha sido sacado do BB “em curtíssimas operações, em operações singelas”, “sabendo que não era para fazer serviço algum”.
De que parte dos autos ele sacou essa afirmação? De lugar algum. Como disse Retrato do Brasil em sua edição 65, de dezembro passado, a cena do ministro Mendes naquela sessão foi “um dramalhão, um mau teatro”, estrelado por ele no contexto de “um julgamento de exceção, feito sob regras especiais para condenar os réus”. O argumento dos juízes para usar “indícios” na condenação, e não provas, era a grande dificuldade de obter as provas materiais do delito porque se tratava de gente muito poderosa. No caso, o argumento não tinha qualquer fundamento. Henrique Pizzolato, o acusado de ter desviado o dinheiro do BB, se demitiu imediatamente após ser acusado. Os projetos para uso dos recursos do Fundo de Incentivos Visanet (FIV), de onde os 73,8 milhões de reais teriam sumido, eram todos, se realizados, de enorme exposição pública. Se não realizados, era praticamente impossível inventar que eles tinham existido e desviar o dinheiro de sua suposta realização. Nos autos do processo estão 99 notas numeradas do Banco do Brasil que correspondem aos 73,8 milhões gastos com as promoções para a venda dos cartões de bandeira Visa do Banco do Brasil usando os recursos colocados à disposição do banco pelo FIV. Milhares, dezenas de milhares, milhões de pessoas viram essas promoções. Em RB 65, como já citado, há uma lista de todas elas. Abaixo nós reapresentamos a mesma lista, agrupando as promoções por tipo e por ordem decrescente dos gastos:
1.
26,3 milhões de reais em mídia de aeroportos, shoppings e exterior urbano
São anúncios em TVs, painéis, carrinhos de bagagem, corredores de aeroportos, TVs de elevadores, corredores, painéis e paredes de shoppings ou de edifícios, corredores de grande circulação, relógios de hora e de temperatura, outdoors, em ônibus, nas cidades. Correspondem ao item mais caro das promoções de venda de cartões porque ou atingem um público muito amplo, como os da circulação urbana, ou voltam-se para os frequentadores de shoppings e aeroportos, que são os de maior poder aquisitivo e, potencialmente, os mais interessados em ter os cartões de bandeira Visa que o BB promovia. Na lista estão registradas 12 dessas grandes promoções.
2.
19,9 milhões em marketing cultural
São gastos com patrocínios de eventos ligados a atividades culturais ou locais de espetáculos, shows, festas populares. Na prestação de contas constante dos autos estão 40 dessas atividades. Ela inclui, por exemplo, o Projeto África, realizado no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, uma das maiores exposições da cultura africana já realizadas nas Américas, cuja inauguração contou com a presença de muitos embaixadores africanos. Inclui também o patrocínio de livros, como O espírito e o sentimento da arte e 450 anos de gastronomia em São Paulo, divulgado nas festas dos 450 anos da cidade de São Paulo; o patrocínio de exposições como a Do Neoclassicismo ao Impressionismo,ado Acervo Numismático do Banco do Brasil, a daHistória da Pré-História. Constam ainda o apoio a festivais tradicionais, como o AnimaMundi e o Festival Internacional de Cinema de Brasília; os custos do Circuito Cultural Banco do Brasil, realizado em 2004, a um custo de 1,5 milhão de reais, em seis capitais do País, fora dos locais nos quais o BB tem sedes culturais próprias, que são Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo; e o patrocínio de festas populares tradicionais, como o Círio de Nazaré, de Belém, o Réveillon do Rio de Janeiro, a Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos e o Festival de Inverno de Campos do Jordão.
3.
18,8 milhões em marketing de venda dos cartões via televisão, jornais e revistas
Inclui 23 ações de promoção. Por exemplo, três grandes campanhas de divulgação dos cartões Ourocard, de bandeira Visa, do BB, através da rede Globo de televisão: Ourocard Gestos Dia dos Pais, Ourocard Gestos Dia das Crianças e Ourocard Gestos Natal, que juntas custaram cerca de 2,3 milhões de reais. Inclui também a campanha para a divulgação do cartão Visa Electron Pré-Datado em jornais, TV e internet. Constam ainda outras promoções de venda de cartões, como a feita por meio do rádio, no programa Em boa companhia, a feita na TV CUT, emissora ligada ao Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (280,7 mil reais), e a feita no boletim diário de imprensa pela internet da Agência Carta Maior (570 mil reais). Nessa categoria ainda estão outras campanhas, como a distribuição de brindes para clientes especiais e eventos para clientes das categorias corporate e empresarial na casa de espetáculos Tom Brasil.
4.
7,4 milhões de reais em campanhas de marketing esportivo
Nesse item estão dez promoções de venda dos cartões de bandeira Visa pelo BB. Entre elas está o patrocínio de atletas, como as campeãs mundiais de vôlei de praia Shelda e Adriana, que, em suas exibições televisionadas para todo o País, usavam anúncios publicitários do BB em seus biquínis, bandanas, sutiãs e outras peças de vestuário. Está também a promoção do 52º Jogos Universitários Brasileiros, em cujos locais de realização foram colocados anúncios de promoção de cartões Visa do BB. Estão ainda três grandes torneios de tênis: o Torneio Tênis Brasil, o Brasil Open de Tênis e o Tênis Brasil Espetacular. E mais: o Projeto Embaixadores Olímpicos, de patrocínio a atividades dos ex-atletas de vôlei Giovane, Carlão, Paulão e Pampa, sempre com o compromisso de realização de marketing dos cartões Visa do BB em suas vestimentas e nos locais dos eventos patrocinados.
5.
1,5 milhão para promoção de eventos de categorias profissionais de classe média alta
Inclui o 18º Congresso dos Magistrados do Brasil, realizado em Salvador, a 69ª reunião de ex-alunos da Universidade Federal de Viçosa e dois encontros de conselheiros da Previ, o fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil.
6.
1,5 milhão para a contratação de serviços técnicos e de consultoria para o estudo das promoções
Inclui gastos com a Trevisan Consultores, a Projeta Consultoria e a empresa Serviços de Tecnologia para o Desenvolvimento de Sistemas.
7.
730 mil reais para outras promoções
Aqui estão quatro promoções: um projeto educativo para a formação de professores; o Criança Esperança, do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), junto com a TV Globo; um seminário sobre turismo da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo e uma cota de patrocínio do Holiday on Ice.
Como já se viu, a Visanet – a empresa controlada pela Visa Internacional que repassou os 73,8 milhões de reais para os gastos realizados através da empresa de publicidade DNA para o Banco do Brasil vender seus cartões de marca Visa –, elaborou para a Receita Federal um documento no qual diz ter todos os comprovantes da realização dessas atividades. Além disso, se tivessem realizado o julgamento de acordo com os princípios básicos do direito penal, os quais exigem, primeiro, a prova de que o crime existiu, os juízes teriam toda a facilidade para ver que o dinheiro do fundo Visanet tinha sido gasto efetivamente em publicidade – e que, portanto, não existia o desvio, não existia a viga mestra da tese do mensalão. E é revelador também constatar que a grande mídia que denunciou a existência do esquema não teve o interesse de ver, por exemplo, o grande faturamento publicitário de empresas como a TV Globo com essas promoções. Nos autos da AP 470 estão inúmeros recibos de pagamentos feitos pela DNA Propaganda diretamente à Editora Globo S.A. Estão também as listas dos anúncios e dos programas específicos nos quais a propaganda dos cartões Visa do BB foi veiculada. Em sua edição 66, de janeiro deste ano, Retrato do Brasil perguntou, então, com ironia: “ESCÂNDALO?! A rede Globo ficou com o dinheiro desviado do Banco do Brasil? Que conclusão o prezado leitor tiraria ao saber de lista com grandes depósitos feitos pelo famoso Marcos Valério na conta da maior emissora de TV do País?”.
10.
Um julgamento flex
OS PRINCÍPIOS BÁSICOS DO DIREITO PENAL
ATRAPALHAVAM, MAS DEU-SE UM JEITINHO
O “desvio de dinheiro público” – fundamentalmente, o desvio de recursos do Fundo de Incentivos Visanet do Banco do Brasil para a empresa DNA, de Marcos Valério e seus sócios, e daí para o esquema de compra de votos do PT – foi, desde o início do julgamento do mensalão, em agosto de 2012, o fato central a ser provado. E muitos viram nos votos do ministro Joaquim Barbosa os argumentos centrais da precisão dessa prova. “Passo a passo, com admirável meticulosidade, [Barbosa] desmontou as enoveladas operações que começaram com o repasse de pelo menos R$ 73 milhões para a DNA”, disse, em seu editorial principal, no dia 28 de agosto, o diário O Estado de S. Paulo. “É consensual que houve desvio de dinheiro público […] Há maioria já definida [no STF] sobre a condição de fictícios dos empréstimos tomados pelas agências de Marcos Valério e pelo PT no Banco Rural. Eles buscavam encobrir o desvio de dinheiro para financiamento político”, disse Merval Pereira, colunista de O Globo, pouco depois. O Estadão completaria no dia 18 de setembro: Barbosa criou “um férreo encadeamento lógico entre o desvio de recursos públicos para bancar o mensalão, o complexo roteiro traçado para fazer o dinheiro chegar aos beneficiários e a condução política de Dirceu”. “Vitória republicana” foi o título de editorial da Folha de S.Paulo no dia 11 de outubro, comemorando a condenação de José Dirceu “pelo crime de corrupção ativa”, uma sentença que só não aceitariam os com “falta de tirocínio” ou “excesso de comprometimento político” e decorrente do fato de terem sido provadas remessas “regulares de dinheiro coincidindo com os períodos de votação no Congresso” com “origem comprovada em recursos públicos.” É um “julgamento exemplar na consolidação de nosso Estado de Direito”, escreveu o professor Candido Mendes, decano da Comissão Brasileira de Justiça e Paz. “É uma refundação da República”, disse o conhecido professor Luiz Werneck Vianna, coordenador do Centro de Estudos Direito e Sociedade”, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro.
O problema dessas avaliações, repetimos, é que o fato básico do mensalão, para ser provado no STF, exigiu uma invenção, uma mentira: um grande desvio de dinheiro público do Banco do Brasil, de 73,8 milhões de reais, e um desvio menor, da Câmara dos Deputados. Não existe, repetimos, a mínima prova desses desvios. E mais: há provas, fáceis de obter e abundantes, de que os recursos públicos citados foram gastos efetivamente na promoção de vendas de cartões de bandeira Visa do BB e em campanhas de publicidade da Câmara dos Deputados. Como foi possível, no entanto, convencer tanta gente – a grande maioria, com certeza, de boa-fé – de que a mentira é a verdade? O desrespeito ao princípio básico da justiça, de que se deve partir primeiro da materialidade do crime para só depois ir em busca dos culpados, foi a chave para o sucesso do ministro Joaquim Barbosa.
Em primeiro lugar, como já se disse, ao esquartejar o julgamento, ele fugiu da discussão central inicial que deveria ter havido no STF: a da prova da materialidade do mensalão – o desvio de dinheiro público para a compra de apoio político, a tese da acusação, contra a prova do crime do caixa dois, confessado pelos réus e com abundante documentação comprobatória. Sem a possibilidade de provar os desvios, inexistentes, o passo seguinte da acusação foi fazer o que poderíamos batizar de um julgamento flex: flexibilizar outros aspectos históricos do direito penal, como a presunção da inocência, a atribuição do ônus da prova à acusação e a necessidade tanto do crime antecedente para as acusações de lavagem de dinheiro quanto do ato de ofício para a comprovação do crime de corrupção, entre outros. A existência do desvio de dinheiro público era essencial, por exemplo, para condenar os dois primeiros réus – Henrique Pizzolato e João Paulo Cunha – com os quais o ministro Barbosa deu o passo decisivo para ganhar a opinião pública mais conservadora já na abertura do julgamento. O desvio não existia. Pizzolato e Cunha não tinham favorecido Marcos Valério no caso das licitações para o contrato de publicidade da DNA com o BB e da SMP&B com a Câmara dos Deputados. Ambos diziam, com provas, que não tinham recebido propina, mas dinheiro do PT, da conta do Rural que movimentava os empréstimos para o partido. Barbosa desprezou fatos, depoimentos, documentos, mas, principalmente, inverteu o ônus da prova: eram Pizzolato e Cunha que deveriam provar sua inocência. E vários dos juízes aceitaram essa inversão e condenaram os dois por não aceitarem como razoáveis suas provas de não terem cometido crime algum. A ministra Cármen Lúcia chegou praticamente ao extremo ao dizer que a prova de Cunha ter recebido propina era o fato de ele ter feito isso às claras, de ter mandado a esposa pegar os 50 mil reais que o valerioduto lhe enviou para as pesquisas de opinião pública, das quais apresentou recibo.
O fatiamento e a não aceitação do desmembramento do processo, para retirar do STF a esmagadora maioria – 36 dos 38 réus – que não tinha foro privilegiado, praticamente tiraram a defesa do julgamento. Os advogados dos réus falaram uma hora cada um, logo após a denúncia do procurador Roberto Gurgel, no início de agosto, e, depois, se tornaram, durante quatro meses, praticamente espectadores da cena dominada pelo ministro relator, acometido por uma “fúria acusatória”, como o qualificaram mesmo comentaristas moderados, como Marcelo Coelho, da Folha de S.Paulo. Mesmo o ministro revisor, Ricardo Lewandowski, que ameaçou duas vezes abandonar o plenário da corte e defendeu, nos mesmos termos da defesa, o desmembramento do julgamento, acabou se curvando a essa lógica e, nas duas condenações iniciais da historinha do ministro relator, absolveu Cunha, mas condenou Pizzolato, tido como responsável pelo desvio essencial, o dos 73,8 milhões de reais do BB para a DNA. Pasmem os leitores: tanto a acusação inicial do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, quanto as condenações de Barbosa e de Lewandowski referem-se a um fato inexistente: os três afirmam que o laudo 2.828 da Polícia Federal responsabiliza Henrique Pizzolato pelo envio dos 73,8 milhões de reais do FIV do BB para a DNA, mas o nome do ex-diretor de marketing e comunicação do BB nem sequer é citado nesse laudo.
Para a condenação de José Dirceu, momento supremo do julgamento, a dificuldade da acusação era ainda maior do que nos casos de Pizzolato e Cunha. O direito penal brasileiro é explícito ao dizer que um acusado não pode ser condenado principalmente por indícios. Diz ainda que as provas para o julgamento devem ser produzidas na fase judicial dos processos, sob o princípio do contraditório, ou seja, com condições para que os advogados dos réus possam contraditá-las. Esse princípio distingue testemunhos produzidos em inquéritos policiais, ou em comissões parlamentares de investigação, como a CPMI dos Correios, dos testemunhos produzidos na fase judicial do processo, ou seja, diante do juiz, com a participação da defesa. Para condenar Dirceu, desde o início do julgamento, não só Barbosa como vários ministros passaram a dizer que se deveria aceitar prova mais elástica para condenar, uma vez que, quanto maior o cargo ocupado, mais difícil seria a obtenção de registros da atividade criminosa. Um exemplo: Dirceu recebeu na Casa Civil dirigentes tanto do Banco Rural como do BMG, que deram empréstimos ao PT ou que foram repassados ao PT. Essas reuniões foram apontadas como indícios do grande crime do mensalão, da trama da qual Dirceu seria o chefe e que incluía o desvio de dinheiro público para comprar deputados e benefícios milionários – ou bilionários, às vezes se dizia – para os mesmos bancos. É lógico que os bancos se aproximaram do chefe da Casa Civil de Lula pensando em benefícios para suas empresas. Mas, além de não terem ocorrido os desvios que tornariam fictícios os empréstimos, diretos ou repassados ao PT, onde, nos autos, foram provados os milionários benefícios aos bancos? Em lugar nenhum. Não há mal nenhum em considerar sempre como interesseiras e suspeitas as aproximações de empresários com o governo e suas doações aos partidos, mas provar crimes é outra coisa. Porém, é claro: se nem o crime central, o desvio de dinheiro público, o julgamento provou, o que mais se poderia esperar dele?
* * *
O Brasil já teve surtos piores de combate à corrupção, como a campanha contra Getulio Vargas, à qual ele reagiu com o suicídio, em 1954, e a feita contra o presidente João Goulart, causa imediata do golpe militar de 1964, que o depôs. A do mensalão, no entanto, também foi muito ruim. Pessoas aparentemente sensatas – como o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, Ayres Britto, que “virou outro”, como disse seu colega de corte Marco Aurélio Mello – de repente se transformaram. Ao condenar José Dirceu como o chefe da “quadrilha dos mensaleiros”, Britto disse que o mensalão foi “um projeto de poder”, “que vai muito além de um quadriênio quadruplicado”. Em outro voto, que postou no site do tribunal dias antes, afirmou que o mensalão envolveu “crimes em quantidades enlouquecidas”, “volumosas somas de recursos financeiros e interesses conversíveis em pecúnia”, pessoas jurídicas como “a União Federal pela sua Câmara dos Deputados, Banco do Brasil–Visanet, Banco Central da República”.
Na sua caracterização do mensalão como um crime gigante, Britto, portanto, não só afirmou que o Supremo teria flagrado um golpe que o PT tinha pretendido dar na República por muito além de 16 anos, como criou uma nova entidade financeira, que chamou de “Banco do Brasil–Visanet”. Britto, tudo indica, surtou para muito além dos autos da AP 470. Sob a glória dos holofotes, passou a pontificar sobre temas variados, como, por exemplo, mecânica quântica, na qual confundiu um dos criadores desse ramo da física, Werner Heisenberg, com Albert Einstein, o criador da relatividade. Deu entrevista sobre o comportamento dos animais e condenou o beija-flor, o qual, por ser carnívoro, segundo ele não deveria cantar (ver RB 66, “Charlatanice quântica”).
Como falta ao País uma imprensa de maior circulação que não seja antipetista e, portanto, não se aproveite dos erros dos políticos do PT para exagerá-los além da conta, como fazem regularmente mesmo os melhores jornais conservadores brasileiros, muitos intelectuais que se informam dos fatos do dia a dia por meio dessa mídia também adotaram o mensalão sob o rótulo do maior crime político da história da República. O grau de informação do cidadão comum, de um modo geral, é pior ainda. Formar um movimento de opinião pública que altere o absurdo resultado do julgamento do mensalão – no qual a conclusão básica, a de que houve desvio de dinheiro público, é falsa – não é fácil, mais ainda porque o próprio PT, apesar de se declarar contra o resultado proclamado pelo STF, não está empenhado diretamente em contestá-lo. No governo da presidente Dilma Rousseff, esse empenho é menor ainda.
Mas, como se diz, onde há opressão, há sempre resistência e luta. E os atingidos pela sentença se mobilizam. O maior ato dessa mobilização foi realizado no último dia 30 de janeiro, no auditório da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio. Foi convocado explicitamente como “Ato pela anulação da AP 470”, pelas direções locais do PT e da Central Única dos Trabalhadores (CUT), pelo Centro de Imprensa Alternativa Barão de Itararé, ligada ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e por outras entidades. Na mesa, além de José Dirceu e outras personalidades, estava a colunista social Hildegard Angel.
Foi um ato emocionante. O auditório da ABI, com capacidade para 600 pessoas, estava abarrotado de gente. Por questões da segurança do prédio, cerca de 200 pessoas não puderam subir para o andar onde se realizava o ato. Angel deu um depoimento emocionante no qual misturou a história da morte de três parentes no período da ditadura militar – sua mãe, Zuzu Angel, e dois irmãos – com a defesa dos condenados no mensalão. Disse que, no julgamento militar de um de seus irmãos, quando ele já estava morto, fatos levaram a junta militar a decretar sua absolvição. Hildegard rebatizou o mensalão como “mentirão”, pelo fato de, no julgamento da AP 470, o STF ter ignorado direitos elementares dos acusados e fatos básicos da história em discussão, coisas que a própria ditadura levou em conta no caso de seu irmão, pelo menos para uma absolvição póstuma.
Falou no ato também, num longo depoimento, o professor de direito Adriano Pilatti, do Núcleo de Estudos Constitucionais da PUC do Rio, que destacou, inclusive, o fato de o STF pretender desafiar o Poder Legislativo ao se arvorar no direito de ter a palavra final sobre a continuidade dos mandatos dos parlamentares João Paulo Cunha e José Genoino, punidos como mensaleiros, mas cuja cassação, segundo a Constituição, obrigatoriamente passa pelo Congresso Nacional.
O ato foi encerrado com um pronunciamento ponderado e firme de Dirceu, que fez um histórico de sua punição, relembrou os pontos principais de sua carreira política e, com o braço esquerdo erguido, conclamou os presentes “à luta”. A esta altura, final de março, estima-se que foram realizados mais de 30 atos de protesto desse tipo, de uma forma ou de outra, contra a decisão do STF.