O sistema de repressão da ditadura protegeu aliados e perseguiu oposicionistas, com processos sumários que atropelavam qualquer garantia jurídica, ao sabor das conveniências políticas e da necessidade de legitimar o discurso moralizador do regime. Documentos obtidos pelo GLOBO por meio da Lei de Acesso à Informação mostram que a Comissão Geral de Investigações (CGI) — órgão criado em 1968 com o objetivo de investigar políticos e servidores suspeitos de corrupção — arquivou sem apurar denúncias contra os governos de Antonio Carlos Magalhães, na Bahia, e do hoje senador José Sarney (PMDB-AP), no Maranhão.
Na direção contrária, a mesma CGI devassou a vida do governador Leonel Brizola em busca de indícios de enriquecimento ilícito, repetindo o processo pelo qual tentava provar o envolvimento do presidente João Goulart em irregularidades. A engrenagem montada pelos militares para reprimir atos de corrupção emperrava quando esbarrava em políticos amigos.
A face mais conhecida da CGI foi o seu uso político para investigar João Goulart e Leonel Brizola, exilados no Uruguai desde 1964. Até maio de 2012, quando entrou em vigor a Lei de Acesso à Informação, os arquivos da comissão eram mantidos secretos, devido à necessidade de autorização de cada indivíduo citado nos processos para que os documentos fossem pesquisados.
Com o fim da exigência, historiadores têm se debruçado sobre os detalhes dos inquéritos contra políticos de oposição à ditadura, como os ex-presidentes Jango e Juscelino Kubitschek e os então deputados Ulysses Guimarães (MDB-SP) e Tancredo Neves (MDB-MG).
Mas a comissão também recebeu uma série de denúncias contra políticos aliados dos militares, conforme mostram os documentos pesquisados pelo GLOBO. Segundo o historiador Carlos Fico (UFRJ), a ingerência política nas investigações ocorria por parte do Executivo. O Sistema CGI era controlado a partir de sua sede, no Rio, mas contava com subcomissões em cada estado. O dia a dia ficava sob responsabilidade do vice-presidente, mas a presidência da comissão cabia ao ministro da Justiça.
— Quando os militares descobriam casos de corrupção de gente que apoiava o governo, o ministro da Justiça ou algum de seus assessores costumava intervir para que o processo cessasse. Muitas acusações feitas contra prefeitos do interior eram interrompidas porque eles apoiavam o regime — explica Carlos Fico.
O historiador lembra que, no começo da abertura política, em 1979, houve uma nova intervenção do Ministério da Justiça, mas desta vez a favor de um político de oposição. Uma denúncia contra o então ex-prefeito de Campinas Orestes Quércia (MDB) foi arquivada por ordem do ministro Armando Falcão, para que não parecesse um gesto contra a abertura.
A comissão montava processos de investigação sumária, sempre secretos, que poderiam resultar em decretos de confisco de bens supostamente comprados com dinheiro de origem ilícita. No entanto, poucos processos resultavam em confisco, já que as investigações muitas vezes continham erros grosseiros ou eram alvo de contestações judiciais devido ao atropelo legal.
Atuando como um tribunal de exceção, ao investigar e julgar casos que ocorreram antes de sua criação, a CGI baseava-se na legislação vigente para passar por cima de todos os direitos individuais. Sem a determinação de um juiz, quebrava-se o sigilo de qualquer pessoa por meio de um simples ofício ao Banco Central. Mensalmente, a Receita Federal repassava aos investigadores centenas de declarações de renda solicitadas. Ao contrário do que ocorre hoje, o ônus da prova cabia ao alvo da investigação e não ao acusador.
De acordo com Fico, a CGI foi criada por um grupo de militares que acreditava em outra forma de repressão, de dimensão pedagógica.
— Eles tinham a crença que os problemas nacionais seriam resolvidos com a aplicação de medidas corretivas. Nesse pacote, estava a censura aos costumes, por exemplo, e a propaganda de campanhas como a do Sujismundo, a do “povo desenvolvido é povo limpo”.
Seguindo essa lógica, os militares propunham o que chamavam de “ações catalíticas”. Em determinadas apurações, mesmo que não se chegasse a nenhuma prova, acreditava-se que a mera convocação de um servidor suspeito para depor poderia ter o efeito positivo de prevenir eventuais atos de corrupção, ou servir de exemplo dentro das repartições.
A exemplo da repressão policial, a paranoia também predominava nos inquéritos da CGI. A maioria das denúncias era remetida por pessoas ou políticos alinhados com a ditadura. Os denunciantes muitas vezes misturavam suspeitas de corrupção a acusações de natureza ideológica e até a picuinhas políticas. Historiadores dizem que os casos apurados pela CGI não merecem ser considerados verdades estabelecidas, seja pelo desrespeito jurídico, seja pelo clima de paranoia reinante.
Denúncias sobre Sarney arquivadas
Em 9 de abril de 1969, pouco mais de três anos após José Sarney assumir o governo do Maranhão, o capitão de Infantaria Márcio Matos Viana Pereira entregou a seu comandante direto, em São Luís, um dossiê de 17 páginas, com 25 documentos anexados. Sob o título “Corrupção na área do estado”, o texto, escrito em primeira pessoa, elencava uma série de denúncias contra a administração Sarney. O relatório foi enviado ao braço maranhense da CGI, submetido à sede no Rio e arquivado meses depois, sem provocar investigações.
A comissão ignorou o documento, que, entre outras críticas, acusava Sarney e asseclas de superfaturar uma obra, desviar recursos de outra e pagar mais por um terreno da Arquidiocese, com o suposto objetivo de agradar ao clero.
O dossiê do capitão foi anexado a outro caso que a CGI analisava, sobre uma dispensa de licitação autorizada por Sarney para construir a estrada entre Santa Luzia e Açailândia. Nada foi investigado, e as acusações do capitão foram engavetadas. Ao arquivar o inquérito sobre a falta de licitação, o relator da CGI reconhece que Sarney errou e pontua que a dispensa ocorreu em “circunstâncias controvertidas”, mas conclui que não era atribuição da comissão reprimi-lo.
Procurado, Sarney afirmou que Pereira o perseguia, acusando-o de “estar cercado de comunistas”. “As denúncias demonstram que o senador teve que enfrentar um duro combate desse grupo militar”, diz nota enviada ao GLOBO.
Suspeita sobre ACM engavetada
Uma reportagem publicada pelo GLOBO em 18 de março de 1975, meses após o fim da primeira passagem de Antonio Carlos Magalhães pelo Palácio de Ondina, fez a sede da CGI determinar à subcomissão baiana uma apuração preliminar. Em um ofício enviado a Salvador, os militares lotados no Rio queriam detalhes sobre possíveis irregularidades na construção da rodovia BR-415, que ligaria Ilhéus a Vitória da Conquista. A obra, orçada na época em 1 bilhão de cruzeiros, teria sido contratada sem licitação. Três meses depois, o caso foi arquivado.
A pedido da sede no Rio, a subcomissão recebeu da Procuradoria Geral do Estado (PGE) — órgão do governo baiano incumbido de defender o estado — um parecer confirmando a ausência de justificativa para não ter licitação. Naquele momento, o governador já era Roberto Santos, escolhido pelo presidente Ernesto Geisel a contragosto de Antonio Carlos.
No documento, a PGE apresentava as justificativas enviadas pelo Departamento de Estradas de Rodagem da Bahia para não ter havido a devida concorrência pública. Segundo o ofício, além da necessidade de aproveitar a estiagem para começar imediatamente a obra, havia outro suposto motivo: empresas baianas estavam “carentes de novos serviços e capacitadas de os executar (sic) em curto espaço”.
Procurado para comentar o caso em nome da família, o prefeito de Salvador, Antonio Carlos Magalhães Neto, não respondeu ao GLOBO.