Em 1959, depois de descobrir João Gilberto em uma transmissão de Chega de Saudade pela Rádio Bahia, o rapazote Gilberto Passos Gil Moreira decidiu trocar o acordeom pelo violão, o instrumento daquele músico que tocava de forma tão inusual quanto apaixonante. Tinha 17 anos. Hoje, aos 71, ainda que feito, ele próprio, um mestre da música nacional, Gil se enxerga como discípulo de João, a quem ele dedica o CD Gilbertos Samba.

São dez faixas do repertório do artista-síntese da bossa nova, mais duas homenagens, Gilbertos, em que brinca com a díade mestre-aprendiz e cita outros pilares da MPB (Dorival Caymmi, Chico Buarque, Caetano Veloso…), e a instrumental Um Abraço no João, cujo título é citação de Um Abraço no Bonfá, uma das poucas músicas compostas por João – Gil queria registrá-la no disco, mas não teve autorização dele (sequer conseguiu lhe fazer o pedido ao telefone).

“Será que o João vai gostar? Não sei… Sei que gosta de mim como músico. Minha reverência a ele é crescente”, conta Gil, para quem Gilbertos Samba é um disco de bossa nova, pelo repertório e por ser calcado em sua voz e em seu violão. “Tem um setor da análise musical que tende a achar que bossa nova é um gênero próprio, tal a força de João, e de Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Carlos Lyra… Para mim, bossa nova é samba. Eu quis reiterar essa minha convicção.”

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Compondo cada vez menos (“a volúpia é menor, é do envelhecimento”), Gil partiu da ideia de fazer justamente um CD de sambas. Numa turnê pela Austrália, pegou-se ao violão tocando um João Gilberto dos primórdios, Doralice, Aos Pés da Santa Cruz (de seu LP de estreia, no 1959 crucial), O Pato. Chegou a Eu Sambo Mesmo, Você e Eu, Tim Tim por Tim Tim, Milagre, gravada por ele, Caetano e João nos anos 1980 e Desde que o Samba é Samba, essa composição de Caetano. “Percebi que eram sambas, e que era João, e pensei em tributar o samba e essa entidade tão importante que é ele, mestre da minha geração.”

Deixou de fora Chega de Saudade. “Preferi Desafinado. São raras as versões dela. É mais exigente, o próprio João duvidou de sua capacidade de tocar essa música com suas dissonâncias todas. E tem a ver com o fato de ele ter sido chamado de ‘cantor desafinado’. Era tão gauche que o reduziram dessa maneira.” À voz, castigada pelos agudos do passado, Gil encontrou descanso no terreno joãogibertiano.

Eu Vim da Bahia, música de Gil gravada por João em 1973 (“na época, foi muito emocionante pra mim”), é, para Caetano – a quem coube o texto de apresentação do CD -, a faixa que sintetiza essa incursão de Gil. Pelo fato de ambos serem baianos (radicados no Rio pela profissão), pelas circunstâncias de agora e de então e pelo fato de Gil ter, nela, radicalizado ainda mais o minimalismo harmônico de João. “(O CD) é uma experiência de densa textura histórica. Toda a malha de significados da bossa nova e do pós-bossa nova, entrelaçada à do tropicalismo e do pós-tropicalismo, se exibe e se esconde, se reafirma e se desfaz na teimosa liberdade de Gil”, descreveu.

Produção. Emulando a ourivesaria de João, Gil passou três anos trabalhando as faixas em suas viagens pelo mundo. “Vivi também no mito do João, de tocar as canções anos até gravá-las.” A roupagem (percussão, bateria eletrônica, flauta, violino, acordeom, guitarra) foi dada pelos produtores, o filho Bem Gil e “sobrinho” Moreno Veloso, filho de Caetano, que chamaram músicos como Domenico Lancellotti, Rodrigo Amarante, Nicolas Krassik, Pedro Sá, Mestrinho (Gil chamou Dori e Danilo Caymmi).

Embora Gil pense num CD de inéditas (que não lança desde Banda Larga Cordel, de 2008), outras homenagens (antes, já dedicara trabalhos a Bob Marley, Luiz Gonzaga e ás festas juninas) poderão se seguir. Talvez a Djavan, Luiz Melodia… “Gosto muito de contemplar meu ecletismo com essas ‘visitas’.”

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Por Roberta Pennafort – De O Estado de S.Paulo

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