Confira a nota do Coletivo Fora do Eixo sobre as acusações que colocaram o grupo e suas atividades pelo Brasil em xeque nesta semana:
Somos Fora do Eixo: Rede de coletivos abertos a sempre refletir e aprofundar nossas práticas
Nos últimos dias, a partir da entrevista concedida por Pablo Capilé e Bruno Torturra ao Roda Viva, o Fora do Eixo e a Mídia NINJA passaram a ser o epicentro de um debate nacional. Nossa existência e nossas ações, que já somam quase uma década de atuação no Brasil e na América Latina, foram questionadas e defendidas, principalmente nas redes sociais.
A partir dos relatos da cineasta Beatriz Seigner e da jornalista Laís Bellini, que apresentaram suas experiências de trabalho com a Rede, a revista Veja iniciou uma série de matérias que visam a nos atingir: só na última sexta-feira, dia 9, foram publicadas oito matérias através de seu veículo online e no sábado mais uma matéria a partir de seu veículo impresso.
Entendemos que aquilo que Beatriz e Laís relatam precisa de resposta. Ainda mais considerando o grande número de pessoas que compartilharam essas análises parciais de nossa experiência. Há outros lados nesse processo. Para que isso fique claro, apostamos no diálogo franco e transparente de posições e idéias. Sempre foi essa a nossa atitude.
Os integrantes dos coletivos que compõem a nossa rede se entregaram a uma ampla reflexão e auto crítica sobre os acontecimentos. A partir disso, produzimos, a muitas mãos, a carta a seguir:
1 – Sobre autoritarismo e seita religiosa
As diversas acusações sobre a presença de uma liderança autoritária são uma tentativa de caricaturizar, desqualificar e neutralizar um processo político. A Rede Fora do Eixo, como outros coletivos e organizações, é baseada tanto em dinâmicas horizontais quanto na valorização de diversas lideranças. Pablo Capilé é um dos fundadores e conceituadores do Fora do Eixo, que por sua vez é uma rede que possui lideranças em todos os seus coletivos.
As acusações nesse campo desqualificam os demais integrantes dos coletivos da rede e sua autonomia e dinâmicas próprias.
Causa estranhamento o fato da revista Veja cobrar da rede Fora do Eixo uma horizontalidade maior de sua organização, sendo que nem ela, nem a mídia tradicional brasileira, possuem um histórico de apoio a este tipo de articulação coletiva, descentralizada e horizontal, tampouco se enquadram nessas características.
Repudiamos também a tentativa de classificar as experiências das Casas como seitas religiosas, numa busca explícita de difamar o projeto. A criminalização de experiências dos coletivos e redes com princípios comunitaristas, prejudicam não só o Fora do Eixo mas todos que buscam alternativas concretas de colaboração fora dos padrões convencionais do mercado.
2 – Trabalho Escravo
Nenhum morador, colaborador, parceiro ou qualquer pessoa relacionada aos coletivos da rede jamais foi submetido a trabalho escravo. A adesão a qualquer atividade e/ou projeto da rede se dá de forma livre, consciente e esclarecida.
A formação cultural e as expertises desenvolvidas durante os trabalhos constituem capital simbólico que inclui contatos, redes de relação, conhecimento de territórios e novas ferramentas no campo das tecnologias sociais.
Qualquer um desses artistas, produtores ou gestores, ao saírem da dinâmica do Fora do Eixo, estão aptos a exercerem suas habilidades e vocações em uma carreira individual ou em outros coletivos, se assim desejarem.
É notório que, mesmo após uma semana de denúncias públicas e grande repercussão nas redes sociais e na imprensa, nenhum membro ativo, colaborador ou vivente decidiu se retirar da rede sob nenhuma prerrogativa.
3 – Sobre o Fora do Eixo Card
O Fora do Eixo Card é uma moeda complementar e não uma forma exclusiva de pagamento de salário ou remuneração. O Card é uma possibilidade de viabilizar as necessidades dos coletivos e seus integrantes a partir de trocas de serviços que não aconteceriam se dependessem exclusivamente de recursos em moeda corrente.
A moeda social, como é conhecida essa tecnologia, se norteia pelos princípios da Economia Solidária. Os empreendimentos envolvidos nesse tipo de relação podem fazer o uso dessas moedas para garantir seu sustento e desenvolvimento. O Fora do Eixo é composto de empreendimentos solidários que criaram suas próprias moedas sociais e são hoje conectadas pelo Card. O sistema considera o próprio trabalho e os produtos resultantes da sistematização dele na rede como fonte de renda e não de lucro.
O pagamento de alguns cachês tidos como “simbólicos” em Reais, ganham corpo considerável quando somados aos pagamentos em Card, ou seja, em serviços prestados, como divulgação, hospedagens, alimentação, transporte, internet, bebidas, produtos, assessorias, ensaios, produção, aluguel de equipamentos e tudo que é de fruição e uso do artista, produtor e empreendores da cultura em geral. O Card é uma solução para compensar a lacuna da remuneração escassa em Reais vivida no cenário cultural independente brasileiro. Muitos shows foram e serão pagos em Reais, não só provenientes de recursos públicos como de recursos privados.
O Card é uma possibilidade oferecida, sem qualquer obrigação de ser aceito. Todas as negociações em Card são acompanhadas e reportadas através do e-mail card@foradoeixo.org.br
4 – Relação com partidos políticos e campanhas eleitorais
A rede Fora do Eixo não possui filiação nem alinhamento compulsório a qualquer partido político. Nossa posição se constitui na cultura de criação de espaços de diálogos abertos e transparentes, divulgados em redes sociais e transmitidos ao vivo sempre que possível.
Cada integrante de coletivo ou morador de Casa Fora do Eixo tem liberdade completa de fazer suas próprias escolhas partidárias, tanto em processos eleitorais, quanto no dia a dia. Neste sentido, as confluências com partidos e movimentos se dão a partir das pautas e lutas que a rede pode aderir.
Respeitamos o processo democrático e não apoiamos nenhuma tentativa de criminalizar o fazer político, assim como repudiamos a inibição de militantes partidários em sua livre manifestação pública.
5 – Sobre recursos públicos
O Fora do Eixo acessa recursos públicos disponíveis através de editais e concursos, nunca executamos nenhum convênio ou termo de parceria direto com o governo federal. Todo o recurso captado junto ao poder público é apresentado aos órgãos financiadores através de relatórios regulares e prestações de contas tal como demanda a Lei.
Desde os primórdios da Rede Fora do Eixo defendemos e acreditamos que Políticas Públicas para a Cultura, Comunicação, Juventude, Meio ambiente e Direitos Humanos são fundamentais para um processo mais justo de desenvolvimento do país. O atual debate, criminaliza o uso de recurso público, prejudicando o avanço do empoderamento da sociedade civil em sua atuação nesses campos.
Estamos lançando o portal de transparência da Rede Fora do Eixo, dando início às publicações de documentos comprobatórios referentes à utilização de recursos públicos, privados e solidários pela rede.
6 – O Caso Beatriz Seigner I
A Rede Fora do Eixo é um ambiente de produção colaborativa e compartilhada. Não é uma empresa e por isso não se baseia numa prestação de serviço comercial de distribuição. Construímos uma dinâmica de compartilhamento e troca e estimulamos a circulação de produtos culturais a partir das pessoas e espaços conectados à rede.
O diálogo com a cineasta Beatriz Seigner tinha como objetivo estabelecer uma relação em que a Rede Fora do Eixo ativaria suas conexões para divulgar e exibir seu filme em espaços alternativos.
Realizamos as tarefas e serviços necessários para a promoção e distribuição do filme nos pontos de exibição. Telefonemas, produção local para exibição, articulação com cineastas, assessoria de imprensa, produção de peças publicitárias, divulgação das exibições e traslados foram algumas das tarefas executadas para cumprir o compromisso com Beatriz Seigner.
Esses serviços, que seriam normalmente computados em Reais no mercado tradicional, são sistematizados no Fora do Eixo como cards, e fazem parte da troca negociada com a cineasta no primeiro momento. Nunca foi prometido a Beatriz que os cards seriam entregues como pagamento ou cachê. Como já foi dito os cards correspondem aos serviços que foram prestados e investidos pela rede para fazer o filme circular.
O investimento realizado pelo Fora do Eixo na difusão do filme “Bollywood Dreams” teria custo superior a R$100.000,00 se fosse calculado e cobrado por uma empresa comum. A proposta de aplicar a marca do Fora do Eixo em seu filme se deu a partir de nossa compreensão dessa troca. Beatriz não aceitou, cobrando da rede sua cota mínima de patrocínio de R$50.000,00 em moeda corrente. Mesmo com sua recusa, entendemos que era importante realizar o investimento para fortalecer nossa parceria e fomentar o audiovisual independente.
A Revista Veja fala em “estelionato” – obtenção de vantagem, causando prejuízo a outrem; utilizando um ardil, induzindo alguém a erro – quando o fato é que se tratou de um acordo baseado em trocas de serviço.
O filme de Beatriz circulou, através do Fora do Eixo, em 35 cidades, com 40 exibições computadas, alcançando o público de 1463 pessoas.
No link abaixo está disponível o balanço financeiro e outras informações sobre a circulação do longa-metragem Bolywood Dreams no projeto Compacto.Cine:
7. Caso Beatriz II – SESC
As duas sessões realizadas em unidades do Sesc, que contavam com pagamento de cachê para o realizador, estavam inseridas dentro de um circuito de 11 exibições que aconteceram com a presença da diretora, que viajou em uma turnê, dentre todas as datas, essas eram as únicas com remuneração direta.
Todo o valor dos cachês foram gastos com os custos da própria circulação e alimentação da cineasta, garantindo que Beatriz Seigner exibiria presencialmente o filme em 11 cidades sem nenhum custo. Esse era o nosso único acordo inicial e foi devidamente cumprido.
8. Caso Beatriz III – “O Desrepeito à arte e aos artistas.”
O Fora do Eixo valoriza os artistas e defende sua remuneração quando trabalham dentro da lógica de mercado. A rede, no entanto, se baseia por uma outra lógica: a construção de redes e circuitos alternativos com base na economia das trocas, moedas complementares e troca de serviços.
As críticas de Beatriz Seigner vão na direção oposta ao modo como as novas gerações e os grupos alternativos se colocam frente à ideia de cultura, valorizando seu aspecto informal e cotidiano, não como produto simplesmente, mas como modo de ver e estar no mundo. Assim como acontece em diversos grupos e redes como os Pontos de Cultura, Povos Indígenas, Povos de Terreiros, Griôs, etc.
As criticas de Beatriz Seigner podem dar a interpretar a existência de um mundo dividido entre alta e baixa cultura, que trata a arte como tema exclusivo para especialistas. Não são esses os princípios da cultura de rede e de nosso entendimento. Compreendemos que a formação cultural se dá também no cotidiano das casas, com exibição de filmes, debates, vivências, leitura individual e coletiva de textos e livros, filmes e músicas baixados e vistos diretamente pela internet.
Quando questiona o fato dos participantes do Fora do Eixo não assinarem suas produções e realizações artísticas reduz o entendimento de criação a uma ideia individualista de autoria. O Fora do Eixo não trabalha com esses parâmetros e toda sua produção é assinada coletivamente, como acontece com diversos outros coletivos de arte e cultura. Trata-se de uma compreensão comunitarista, que estimula a valoração do trabalho e esforço coletivos na produção de obras e produtos culturais.
Nunca negamos a condição de artista a nenhum participante do Fora do Eixo e nunca houve nenhuma espécie de política da rede no sentido de coibir práticas do campo artístico. Pelo contrário, nos últimos anos diversos talentos emergiram das estruturas da rede de forma espontânea e conectada com nossas ações e lutas. Fotógrafos, videomakers, designers, ilustradores, músicos, Djs, iluminadores, rappers e dançarinos moram em Casas Fora do Eixo e incidem diretamente em nossas atividades.
O Fora do Eixo atua como alternativa à deficiência estrutural nos sistemas de distribuição da cultura brasileira, que não permite a circulação e fruição dos processos e produtos de maneira igualitária.
Entendemos, como rede, que é preciso fortalecer os canais de distribuição dos bens culturais nas pontas e circular suas produções, ou seja, que se torne possível aos coletivos e organizações das pequenas cidades usufruir do que é produzido no país, assim como criar e produzir novas experiências que possam também circular nos diversos territórios. Valorizamos a experimentação nas artes e na cultura e estimulamos a ampliação de repertórios e formação artística e cultural.
9 – Sobre o caso Laís Belini
É importante esclarecer que a experiência da Laís Bellini como moradora da Casa Fora do Eixo São Paulo foi de cerca de 3 meses e não de 9 meses, conforme noticiado pela Revista Veja. O restante do tempo se passou no coletivo Enxame, de Bauru, ao qual ela não dirige nenhuma de suas acusações. É comum que alguns jovens – a partir de expectativas conceituais – tenham dificuldades de se adaptar ao ambiente coletivo e fiquem desiludidos com a convivência na prática.
A informalidade e as conversas francas podem ter contribuído para que eventuais situações e comportamentos individuais, num ambiente livre e aberto, sejam lidos de forma equivocada como regra ou comportamento do grupo.
Lamentamos a experiência de Laís e a de qualquer outra pessoa que tenha vivido algo semelhante em nossa rede. Ao refletirmos e exercitarmos a autocrítica, entendemos a importância de aperfeiçoar os mecanismos de vivência e de afastamento do Fora do Eixo.
Trabalhamos diáriamente para que situações como a dela não ocorram, o protagonismo de cada indivíduo sempre foi um farol a guiar nossas ações.
10 – Relações afetivas
Os integrantes dos coletivos da rede Fora do Eixo não fazem uso de nenhum tipo de manipulação sexual a qualquer pessoa. Não há qualquer tipo de restrição às diversas formas de relações, independente de gêneros, que as pessoas estabelecem dentro ou fora da rede. Existe amor livre, monogâmico, entre gays, héteros e bissexuais, ou seja, são múltiplas visões sobre o tema dentro dos coletivos. Não há posições institucionais sobre isso.
Lamentamos se no decorrer de nossa trajetória e construções possamos ter soado frios ou menos humanos de qualquer maneira. Nosso vigor e capacidade produtiva se baseiam em um profundo sentimento de amor e de transformação da realidade, transcendendo algumas vezes as relações pessoais em prol de uma visão mais ampla da sociedade. Não nos interessa aqui justificar qualquer ação relatada, mas nos expor enquanto indivíduos e coletivos abertos a sempre refletir e aprofundar nossas práticas através do debate e da absorção das críticas do maior número de pessoas possíveis.
11 – Considerações Finais
Essa carta foi escrita durante dias, a partir de uma ampla discussão e reflexão sobre os mais variados temas, com ampla participação de integrantes dos coletivos. Estamos abertos a quaisquer outras perguntas, dúvidas, críticas e sugestões.
Nesse tempo diversos depoimentos de participantes do Fora do Eixo foram lançados na rede, participamos de entrevistas e estamos lançando o portal de transparência da rede.
Temos consciência que o debate sempre marcou nossas relações na busca pela coerência entre o discurso e a prática. Buscamos encarar as críticas como combustível para nossas reflexões e incentivo à reinvenção diária à que nos dispomos. Estamos em processo e temos consciência das dores e das delícias à que estamos expostos.
Consensuamos também que se a engenharia de informações da rede estivesse melhor arquitetada, parte das dúvidas já estariam sanadas.
Esperamos que esses episódios possam contribuir para a inteligência coletiva social, tão cara num país ainda tão profundamente marcado por desigualdades, preconceitos e medo.
Estamos à disposição para dar continuidade aos debates e outros esclarecimentos necessários. As Casas Fora do Eixo e coletivos estão abertos para pesquisa, vivência, ouvidorias, ou o que mais for desejado.
Para outras informações: contato@foradoeixo.org.br