Por Mariana Kaoos
Marlua é do signo de aquário e gosta de assobiar que nem passarinho nos dias de muito calor. Lembra aquelas grande divas americanas, que cantavam blues e jazz, com profundo respeito pelo que faziam, totalmente entregue ao palco, ao público, ao som. Narjara é de leão e seus longos dreads lembram mesmo uma juba bonita, forte e imponente. Sua voz é firme, seu olhar também. Silenciosa e observadora, Narjara se expressa através da música e, principalmente, dos acordes da sua guitarra.
Jeana é virginiana. Metódica, odeia sujeira. Traz em si uma extrema fé em Deus, na música, nas belezas da vida. Vinda de Santo Amaro da Purificação, ela traz o samba de roda no pé e a diversidade rítmica na voz. No palco é a que mais brinca, a que conversa igual uma matraca, mas também a que apresenta ao público um imaginário de explicações sobre as mais diversas canções brasileiras. Marcelly, igual à Narjara, é do signo de leão. É morena. É tímida. É sensual. Menina baixinha, quando sobe ao palco se transforma. Cresce e torna-se mulher, segura de si e sempre assessorada pelo violão.
Marcelly também tem uma cabeça que não para de ter ideias ousadas. E, foi exatamente uma dessas ideias, que fez com que ela se aproximasse de Marlua e Narjara para apresentar uma proposta musical, até então, nunca feita em Vitória da Conquista. A imagem que Marcelly possuía em mente era mais ou menos essa: que elas, cantoras do sudoeste da Bahia, com suas mais diversificadas experiências musicais, se unissem para interpretar a obra de outros artistas, conhecidos num cenário nacional, mas com uma roupagem que seria de acordo com a visão musical de cada uma.
Elas prontamente toparam. Todas cantariam e tocariam instrumentos diferentes. Marlua foi para gaita e percussão. Narjara ficou com a guitarra. Marcelly pegou o violão. Inicialmente, a quarta voz, e quem tomaria conta do baixo, seria a cantora Jéssica Oliveira. Contudo, por problemas de ideologia artística e também de horários, Jéssica deu lugar a Jeanna, que está no grupo desde então, contribuindo e inovando, com muito afinco e responsabilidade.
Passada a euforia inicial, vieram os ensaios. Elencaram uma gama de artistas que tinham vontade de interpretar. Depois escolheram as músicas, o local em que iriam se apresentar e o mais importante, o nome do projeto. Intitulado “Elas Cantam”, as meninas fizeram show pela primeira vez no extinto bar Viela, no dia dois de maio de 2014. No dia em questão, a casa de shows lotou. Jovens dos mais distintos nichos sociais de Vitória da Conquista foram lá para prestigiar as meninas interpretando o artista da vez: Cazuza.
A partir daí a empreitada só cresceu. “Elas Cantam” já homenageou Rita Lee, Cassia Eller e Raul Seixas. Foi através desse projeto que elas lotaram o Teatro Carlos Jehovah, fizeram eventos particulares, tocaram na Exposição Agropecuária de Vitória da Conquista e também no Festival da Juventude. Esse último, por sinal, acabou gerando um pouco de dor de cabeça para elas.
FESTIVAL DA JUVENTUDE – A história foi assim: A Secretaria de Cultura, Esporte e Lazer, da Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista, resolveu abrir um edital para que bandas locais pudessem se apresentar durantes os três dias de Festival, ao lado de outras bandas de alcance nacional. O edital da prefeitura pedia que apenas bandas autorais se inscrevessem, no entanto, não estava totalmente bem especificado. Os responsáveis para selecionar as bandas foram três jurados escolhidos nas reuniões de construção do festival: Gilmar Dantas, produtor cultural; Rafael Flores, jornalista; e Niel Costa, técnico de som.
Após analisarem todos os inscritos, as bandas selecionadas pelo júri foram: Dona Iracema, Ladrões de Vinil, Complexo Ragga, Cama de Jornal, Dost e SoundMachine. Os jurados fizeram uma lista de suplentes, caso algum grupo desistisse ou não pudesse se apresentar. Nenhuma banda desistiu, mas a organização resolveu ampliar o número de bandas locais na programação de seis para oito. O primeiro nome de suplência, que então passou a integrar a programação, foi justamente o projeto que Marlua tinha enviado, o “Elas Cantam Rita Lee”, e a confusão iniciou-se aí.
Algumas bandas se voltaram contra o projeto das meninas, por alegar que era um projeto cover e que, por isso, elas não poderiam se apresentar no Festival da Juventude. Na época, o júri chegou a se pronunciar a favor da questão. “Os debates nas primeiras reuniões giraram em torno de que deveriam se priorizar as bandas autorais, mas mesmo assim um projeto cover ficou na frente dos demais na lista de suplência. No entanto, a portaria que regulamentou a seleção dava brechas para que projetos cover passassem, o que acabou elevando o status da homenagem à Rita Lee”, afirmou Rafael Flores, na sua coluna Geléia Geral, na Revista Gambiarra.
Passados alguns dias e com a poeira já baixa, os preparativos para o Festival continuaram, bem como a expectativa do público. Contudo, essa história ainda iria dar muito pano pra manga. O que acabou acontecendo foi que as meninas também se apresentaram no Festival da Juventude exatamente com o projeto “Elas Cantam Rita Lee”. De acordo com Narjara, a prefeitura tinha convidado elas para tocarem e, por isso, não foi antiético. “O que aconteceu foi que a prefeitura, através da Secretaria de Cultura, nos convidou para nos apresentarmos no Festival. E isso aconteceu independente do processo de seleção das bandas locais. Nós aceitamos porque somos artistas e vislumbramos o Festival como um bom espaço para mostrarmos nosso trabalho, mas não foi do nosso interesse fazer disso uma afronta às outras bandas”.
Em sua apresentação no Festival, a banda Cama de Jornal chegou a se pronunciar contra a apresentação das meninas. Nem, o vocalista do grupo, fez um discurso em palco, que acabou gerando desconforto e dividindo a opinião do público. Enquanto uns também se posicionavam contra, outros apoiavam, levantavam bandeiras e tomavam partido do “Elas Cantam”. No final das contas, elas acabaram se apresentando na noite de sábado com muita segurança e profissionalismo. Quem esteve lá, pode curtir grandes clássicos de Rita Lee na voz de Marlua, Narjara, Marcelly e Jeanna.
O saldo do Festival da Juventude para o projeto “Elas Cantam” acabou sendo positivo. As meninas passaram a ser mais conhecidas e, com isso, a se apresentarem em outros locais.
DIFICULDADES – Nesse mês de julho, as meninas levaram o projeto para o bar Costinhas Prime, localizado perto da avenida Olívia Flores, em Vitória da Conquista. No dia 5, fizeram o público cantar os grandes sucessos de Cássia Éller e, no último domingo, 19, mostraram que estavam com muito rock’n’roll na veia ao reinterpretarem a obra de Raul Seixas.
Em ambas as apresentações, ocorreram problemas no som, o que acabou atrasando a apresentação. Para Jeanna, a infraestrutura dos espaços e as condições para que ocorram apresentações musicais ainda são insuficientes em Conquista. “Às vezes, o público não liga muito, acaba levando na brincadeira, mas pra gente que mexe com música é terrível ter problema no som, nos instrumentos, no equalizador. E ainda tem a questão do espaço, porque infelizmente, tem sido cada vez mais difícil encontrar lugares que ofereçam um suporte legal para as nossas apresentações”, comenta a baixista do grupo.
Marlua segue a mesma linha de raciocínio. De acordo com ela, “como em grande parte do Brasil, Vitória da Conquista está entrando no modismo de músicas mais comerciais. Dessa maneira, nem todo espaço está de acordo a receber uma banda grande, pra que possamos fazer um trabalho mais elaborado, mais estudado. Encontramos dificuldade até mesmo de fazer boas apresentações voz-violão, pois nem todo estabelecimento tem a preocupação de quanto um som de qualidade facilita a vida do artista”.
O que fica, entre o público crítico e a classe artística musical da cidade, é sempre essa dualidade da protuberância de artistas locais versus más condições de trabalho para eles. Sabe-se que Vitória da Conquista é tida como um celeiro musical. E se assim o é, por que os órgãos públicos, bem como as empresas privadas, não investem em espaços pensados e construídos para apresentações musicais tanto dos artistas nacionais, como os locais?
Marlua diz que a palavra para isso é desvalorização, e que ela também é praticada pelos próprios artistas. “Creio que ainda a velha máxima de que música não é trabalho é um dos principais fatores que levam à nossa desvalorização. Além disso, tem aquelas pessoas que tocam um violão básico e acham que podem fazer barzinho e cobrar metade do que é justo para um trabalho. Isso desvaloriza a categoria e cria um efeito dominó”, pontua a cantora.
Ultrapassando todos os contratempos de som e atraso, “Elas Cantam Raul Seixas” foi uma boa apresentação. Entoando sucessos como “Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás”, “Gita”, “Ouro de Tolo” e “Sociedade Alternativa”, Jeana, Marcelly, Narjara e Marlua mostraram a força que o “Elas Cantam” pode ter, se continuar investindo no estudo e na reinterpretação de obras de grandes artistas nacionais. O público presente cantou grande parte das músicas em uníssono com elas.
NOVOS PLANOS – Apesar dos entraves do caminho, a animação e a vontade de continuar fazendo impera nas meninas. No período de São João, o projeto “Elas Cantam” fez uma valiosa aquisição, a entrada de mais uma integrante. Cantora nas noites conquistenses, a geminiana e toda “avuada” Fernanda Conegundes já chegou com tudo, contribuindo com o processo de renovação constante do projeto. Fernanda, no entanto, entrou apenas como musicista. É ela quem comanda a bateria do grupo.
E os planos não param por aí. Marcelly diz que, no próximo dia 7 de agosto, elas se apresentarão no Canto do Sabiá com o “Elas Cantam Rock de A a Z” e que a ideia é continuar cada vez mais firme com o projeto para quem sabe, daqui a algum tempo, ser um evento com músicas também autorais. Será que muito em breve pode surgir o “Elas cantam Elas”? Nós, público e fãs, já estamos ávidos. Esperando que sim!