Por Sérgio Armando Diniz Guerra Filho*
A Independência do Brasil guardou para a Bahia episódios bastante intensos. Nesta então província, portugueses e brasileiros, em lados opostos, pegaram em armas para definir o futuro da porção americana do Reino Unido português. Esta guerra durou cerca de um ano e alguns dias, entre 25 de junho de 1822 e 2 de julho de 1823, e mobilizou, de ambos os lados, dezenas de milhares de soldados, sem contar com outras tantas pessoas que, ou participaram da guerra de outras formas que não no front, ou tiveram suas vidas marcadas dramaticamente pelos fatos decorrentes da guerra.
Se considerarmos que a guerra aconteceu estritamente neste período, devemos levar em consideração alguns acontecimentos anteriores que também contrapuseram portugueses e baianos em ideias e armas. O primeiro deles, os episódios de fevereiro de 1822, nas ruas da cidade do Salvador; o outro, em Santo Amaro, já em junho do mesmo ano. Na primeira oportunidade, houve desentendimentos políticos acerca na nomeação pelas Cortes de Lisboa do General Madeira de Melo para chefiar a Junta Governativa da Bahia, além das Armas da Província. Estes desentendimentos tomaram as ruas e batalhões formados majoritariamente por baianos tomaram o Forte de São Pedro, de onde bateram-se com outros batalhões de maioria portuguesa. Cercados e sem perspectivas militares, uns se entregaram, outros dispersaram, indo em direção aos subúrbios da capital ou às vilas do recôncavo baiano.
Depois dos desentendimentos de fevereiro, meses se passaram até que um novo conflito armado tivesse relevo. No entanto, estes não foram meses de calmaria. Na verdade, muita movimentação política – temperada pela migração intensa de descontentes da capital para as vilas do recôncavo – além de compra de armas, pólvora e munição, aconteceu nestes meses. Em junho, a ruptura política estava madura e apontaria para um conflito mais consistente. No dia 14 de junho de 1822 – uma semana depois de uma tentativa frustrada na capital – a Câmara de Santo Amaro proclamou o príncipe D. Pedro – o qual só seria coroado Imperador meses depois – “Defensor Perpétuo do Brasil”. Na sequência, tropas portuguesas promoveram um quebra-quebra na vila e, sem sofrer contragolpes, retiraram-se para Salvador. Dias depois, a mesma declaração aconteceria em Cachoeira, mas os desdobramentos seriam outros.
Reuniões ocuparam os dias seguintes, até que, em 24 de junho, reuniram-se proprietários e seus clientes no distrito de Belém, de onde oficiaram às autoridades de Cachoeira. No dia seguinte, desceram à vila armados, encontrando “povo e tropa” à frente da Câmara, que, reunida, aclamaria D. Pedro. À tarde, após Te Deum, uma embarcação militar portuguesa disparou contra a multidão. Entre ataques e revides, a canhoneira foi dominada e seus tripulantes aprisionados. “Assim começou a guerra pela Independência do Brasil na Bahia” – sentencia Luis Henrique Dias Tavares.
A partir de 25 de junho, o confronto estava instalado e era irreversível. O lado baiano levou alguns meses para constituir uma força armada minimamente estruturada. Tal exército foi formado com egressos das tropas fugidas da capital em fevereiro, mais ordenanças principalmente das vilas do recôncavo, além de um contingente grande de voluntários, grande parte de trabalhadores, arregimentados e armados por seus patrões, além de voluntários avulsos, livres, libertos e até escravos que fugiam para servir em prol da liberdade brasileira e, assim, angariar a sua própria.
Esta disposição não seria fácil e nem harmônica. As tensões sociais de uma Bahia marcada pela escravidão e pela pobreza impregnariam o dia a dia da província em guerra. Escravos viram na disputa dos senhores brancos chance para rebelar-se. Índios, libertos e pobre livres, dentro do exército, rebelaram-se contra seus superiores hierárquicos; fora dele, inquietaram-se e manifestaram-se contra as autoridades, demonstrando desacordo com o projeto político dos grandes proprietários.
Do lado português, às tropas de linha que serviam em Salvador, foram acrescidos os contingentes trazidos pelo General Madeira, além de tropas vindas do sul do Brasil. Eram tropas melhor treinadas, com melhores armamentos, mas, com o avançar dos dias, foi perdendo a superioridade numérica inicial. As tropas portuguesas foram suficientes para ganhar a cidade em fevereiro e impedir uma investida de sucesso durante a guerra, mas não para avançar contra o recôncavo baiano ou a ilha de Itaparica, o que penderia fatalmente o destino da Bahia em direção ao domínio português.
Na retaguarda das tropas baianas, foi criado um governo para as vilas que resistiam ao governo de Madeira desde Salvador. O Conselho Interino de Governo era formado por representantes de diversas vilas baianas, escolhidos pelas respectivas câmaras. Seus membros eram, portanto, proprietários com relativo cabedal. Este Conselho foi responsável pela articulação política das elites baianas com D. Pedro, no Rio de Janeiro; pela manutenção da “ordem e do sossego público”; pelo sustento da guerra e pelas primeiras investidas militares contra os portugueses – que constituíram em manobras para consolidar o cerco à capital.
Em setembro de 1822, o General Pedro Labatut desembarcou em Recife, Pernambuco, com tropas vindas do Rio de Janeiro e acrescidas de tropas pernambucanas, alagoanas e sergipanas. Em outubro, o cenário da guerra estava completamente montado. Duas colunas, em Cabrito/Pirajá e em Itapuã/Armações, acrescidas pouco depois por outra, central, entre São Caetano e Brotas, mantiveram os portugueses em sua posição original e cada vez menos abastecidos.
Daí em diante, a guerra resumiu-se a poucas, mesmo que enérgicas, tentativas portuguesas de furar o cerco. Do lado brasileiro, prevaleceu a estratégia de manter o cerco, evitando o acesso dos portugueses a alimentos e munição, forçando-os à rendição. Merece destaque a batalha de Pirajá, imortalizada nos versos de Castro Alves, na sua Ode ao Dous de Julho:
“O anjo da morte pálido cosia
Uma vasta mortalha em Pirajá”
Esta batalha, ocorrida em 8 de novembro de 1822, começou com uma investida portuguesa em direção ao Recôncavo no intuito de tomar posições brasileiras e terminou com uma debandada desordenada das tropas lusitanas, já em final de tarde. É desta batalha a controversa narrativa sobre o Corneta Lopes. É também de Pirajá o título de batalha com o maior número de baixas – cerca de duas centenas – durante toda a guerra. Pode-se considerar – pelo tamanho da operação e pela ousadia portuguesa, saindo de posição de vantagem topográfica – que esta derrota selou o destino da guerra. Madeira e seus correligionários devem ter percebido, a partir daí, a impossibilidade de demover as tropas brasileiras – mais numerosas e em posições também bem guarnecidas – para conseguir abastecimento.
Por mar, as manobras portuguesas se reduziram a hostilizar posições e embarcações brasileiras e a tentativas de desembarque na Ilha de Itaparica, estas com resultados mais sérios. A 7 de janeiro de 1823, uma operação de grande intensidade pretendeu desembarcar soldados lusitanos para ocupar a Ilha. Os portugueses foram derrotados ao terceiro dia de combate, com muitas baixas. Em fins de abril, início de maio de 1823, as manobras da marinha portuguesa ficariam ainda mais limitadas, com a chegada da esquadra imperial sob o comando de Lord Cochrane, um veterano inglês, contratado por D. Pedro I.
Com o decorrer do tempo, a posição portuguesa tornava-se cada vez mais delicada. A escassez de alimentos, as dificuldades de comunicação com Portugal e com outras partes do Brasil, a superioridade numérica dos sitiantes convenceram as altas patentes lusitanas de uma retirada, provavelmente combinada com as autoridades brasileiras. Assim, em 2 de julho de 1823, as tropas brasileiras entravam em Salvador, reunindo definitivamente esta cidade ao Império Brasileiro.
A Bahia, como parte deste Império, garantiria aos seus proprietários de terras e escravos, a manutenção de seu status. Mas, ficariam as cicatrizes da guerra: uma economia que custaria a se reequilibrar; uma desconfiança, algumas vezes atingindo picos violentos, das camadas populares sobre comerciantes portugueses… Guerra finda, as velhas tensões sociais latentes acompanhariam a província por anos, pintando os anos seguintes com as cores da luta por liberdade.
*Mestre em História pela Universidade Federal da Bahia. Texto publicado originalmente na Biblioteca Virtual 2 de Julho, da Fundação Pedro Calmon.